Os carros perfilados nos lugares
marcados a tinta branca no pavimento cinzento, exibem as suas marcas e modelos,
variando as cores entre o preto e o cinzento, pontualmente o branco. A
qualidade da frota hoje estacionada é consideravelmente superior à habitual,
além disso já são poucos os lugares vagos e ainda estamos no início da manhã, o
que significa que está a decorrer algum evento, um congresso possivelmente.
Ouvem-se pneus a chiar, entrou
mais uma viatura. Percorre todo o piso de acesso a uma velocidade superior à
normal, como não há lugares vagos, acelera em direção ao piso superior, à cota
do arruamento. Sobe a rampa. O piso ilumina-se com a luz dourada do sol
nascente que atravessa os favos metálicos da fachada do edifício. Também este
piso, normalmente vago, hoje está lotado. A viatura percorre todo o piso e sobe
a rampa que dá acesso ao piso superior. Encontra alguns lugares ainda vagos e
estaciona perpendicular ao percurso que circunda o 3.º piso de estacionamento. Aí
ficará durante todo o dia, uma jornada de trabalho.
Quando não está lotado, o parque
de estacionamento adquire caraterísticas espaciais que transcendem a sua
simples e mundana funcionalidade. A vasta e ampla área de cada piso é pontuada
pelo ritmo dos pilares que, quando iluminados pelo rasante sol nascente, criam
um sugestivo jogo de luz e sombras. A natural escuridão do espaço dada pelo tom
cinza dos seus elementos adquire então uma encorajadora tonalidade amarelada,
luminosa apenas no pavimento, mantendo-se a zona junto ao teto na penumbra, que
apetece percorrer. A escala do espaço, normalmente deserto, provoca um
sentimento de poder, de posse e de satisfação que convida a rasgar as sombras a
velocidade excessiva, percorrendo as retas entre pilares, ignorando as
marcações dos lugares vagos no pavimento, até à curva feita com os pneus a
chiar.
Quando não está lotado, o parque
de estacionamento não é um parque de estacionamento, é uma pista de
automobilismo, um submundo onde podemos ser heróis ou vilões, um castelo a
conquistar ou um mar a navegar, é um espaço livre à nossa vontade e imaginação
com todo o seu potencial atmosférico, vivencial e espacial.
Mas hoje o parque de
estacionamento está lotado, não há espaço à imaginação, a devaneios. Hoje a
missão é encontrar um lugar vago, estacionar e seguir a rotina diária. Quem
sabe no regresso o parque já se encontre vazio e me possa imaginar a percorrer
estradas e cidades num carro bem mais potente do que na realidade é, me possa
imaginar senhora daquele mundo de luz e penumbra, heroína ou vilã, conforme me
tenha corrido o dia.