Viagem




O comboio ainda se encontrava na plataforma da estação de Santa Apolónia, iluminado pela frágil luz de fim de dia de inverno, aguardando a hora da partida em direção ao norte, quando surgiu a confusão. Aparentemente tinham sido vendidos 2 bilhetes para o mesmo lugar. O rapaz, de pé, confirmou os dados do seu bilhete no telemóvel e o casal, que já se encontrava sentado, fez o mesmo, confirmando os dados dos seus bilhetes. Comprovou-se a coincidência do lugar nos 2 bilhetes, no entanto, o jovem, de feições desenhadas com mestria e tranquilos olhos azuis, com delicadeza disponibilizou-se a sentar-se num qualquer lugar vago até à chegada do revisor. À hora marcada o comboio iniciou a sua marcha ainda com poucos lugares ocupados. Passados apenas 10 minutos de viagem parou na estação do Oriente onde entraram os passageiros que lotariam todos os lugares de todas as carruagens. Já o comboio seguia viagem, afastando-se de Lisboa e ainda reinava a desordem, com pessoas à procura dos seus lugares, atravessando e cruzando o estreito corredor, passageiros que, tendo encontrado o seu lugar, paravam para colocar a bagagem na prateleira superior, impedindo a passagem, quando surgiu novo constrangimento. Uma jovem rapariga de cabelo preto, longo e ondulado, vestida com camisa branca, calças e casaco pretos, a combinar com as armações dos óculos, tinha bilhete para o lugar onde se sentava um dos elementos do casal protagonista da altercação anterior. Mais uma vez foram verificados os respetivos bilhetes e confirmou-se a coincidência de existirem 4 bilhetes para 2 lugares. O muito sereno e compreensivo jovem, vestido com calças de ganga, ténis all star pretos, blusa preta e sobretudo comprido, que, entretanto, já se encontrava de novo em pé, porque todos os lugares estavam agora ocupados, sugeriu que esperassem pelo revisor que deveria solucionar a situação. Não era a primeira vez que lhe acontecia algo idêntico, mas a rapariga, muito racional e pragmática, insistiu em verificar ela própria o bilhete do casal, alguma coisa teria de estar errada, não aceitando que tivessem sido vendidos 2 bilhetes para cada um dos 2 lugares onde o casal se encontrava sentado. Da sua perspicácia surgiu a constatação que o casal tinha de facto bilhetes para aqueles lugares, daquela carruagem, daquele comboio, àquela hora, desse dia… mas do mês seguinte! Esclarecida a questão, o casal resignado e assumindo o seu engano, levantou-se e cedeu os respetivos lugares aos jovens que finalmente puderam sentar-se. Teria o casal de procurar o revisor e tentar arranjar uma solução para a sua viagem, que, entretanto, já decorria.

Enquanto os jovens se acomodavam nos respetivos lugares trocaram algumas palavras, muito provavelmente relativas à questão dos bilhetes. Já sentados continuaram ainda por alguns instantes a conversar. Quando a pretendente a escritora, que tinha assistido a todo o desenrolar da situação, olhou para trás e os viu a conversar, os seus olhos iluminaram-se e, entusiasmada, comentou com a filha, que viajava no lugar ao seu lado, - Já sei o que vou escrever; vou contar a história do jovem casal que o acaso da duplicação de bilhetes de comboio uniu, tendo passado de completos estranhos para inseparáveis amantes! Bem, admitia que o tema era um pouco piroso e um lugar comum, mas era a história que tinha acontecido ali mesmo... Ou poderia vir a acontecer. As ideias começavam a fervilhar na cabeça da aspirante a escritora, a coincidência dos acontecimentos era enorme e os ingredientes estavam todos lá: dois bonitos jovens da mesma faixa etária viajavam sozinhos rumo ao norte do país, um percalço com os bilhetes tinha-os levado à fala, poderiam aprofundar o conhecimento mútuo durante a viagem, teriam cerca de três horas para essa tarefa, o resto viria naturalmente. Animada a, digamos, escritora olha por cima do ombro esquerdo para observar o jovem casal e analisar o avanço da relação. A deceção apoderou-se dela quando verificou que afinal os jovens apenas tinham trocado meia dúzia de palavras, provavelmente relativas à situação vivenciada por ambos, e de momento ignoravam-se completamente. Ele, com phones nos ouvidos, utilizava com atenção o telemóvel, ela, apenas prestava atenção ao livro que, entretanto, tinha tirado da mala e que lia sem dele desviar o olhar. Afinal, dali não resultaria nenhuma relação, tanto trabalho que o destino tinha tido para os juntar, o transtorno causado ao casal que acabou por embarcar no comboio com o bilhete errado e simplesmente ignoravam-se! Voltou-se para a frente e franziu a sobrancelha esquerda, o que fazia sempre que tentava engendrar a solução para algum problema. Não queriam falar e travar conhecimento agora, pensou, não fazia mal, afinal seria ela a escrever a história, era livre de lhes inventar o futuro que quisesse. Pois bem, então não falariam mais durante a viagem, mas a jovem seria uma brilhante aluna do 6.º ano da faculdade de medicina da universidade do Porto e o rapaz um jovem arquiteto, recém-licenciado, a trabalhar a tempo parcial num conceituado gabinete de arquitetura, também no Porto, tentando conciliar esta atividade com a banda em que tocava piano e da qual era manager. Teria, aliás, sido por essa razão que se tinha deslocado a Lisboa. Estava a ultimar a organização de uma série de concertos intimistas em várias salas e bares da capital.

Voltar-se-iam a encontrar no Porto, no hospital, após um trágico, mas não fatal, acidente de trabalho. Apesar de cumpridos todos os requisitos de higiene e segurança no trabalho na obra projetada pelo gabinete de arquitetura, em execução na Cedofeita, a verdade é que o acidente ocorreu. Há quem tenha dito que a inexperiência do arquiteto responsável nesse dia pelo acompanhamento da obra, o levou a cometer aquela inconsciência e irresponsabilidade. Há quem tenha dito que se tinha apercebido logo que o arquiteto não estava bem, devia estar pedrado, para ir para a obra com aqueles olhos e olheiras, não admira que o acidente tivesse ocorrido. Há ainda quem afirme a pés juntos que o rapaz foi empurrado.

Seja como for, teria de haver um acidente. Eles teriam de se voltar a encontrar e, sendo ela estudante do 6.º ano de medicina, o hospital seria um ótimo local de encontro. Ele fragilizado, mas nunca deixando de transmitir tranquilidade no seu olhar azul. Ela mais enérgica, pragmática, determinada em arranjar a melhor solução para os problemas que se lhe apresentam, como o daquele jovem que, junto com os colegas e médicos, tinha de sarar. A cara não lhe era estranha, apesar do grande hematoma. Deveria ser só aquela estranha e terrível sensação que tinha sempre que se abeirava da cama de um paciente. O medo de reconhecer o rosto de alguém querido, provocava quase sempre um falso reconhecimento do rosto do doente. Mas aqueles olhos, aquele olhar meigo e tranquilo, azul, já o tinha sentido antes.

A história poderia ser diferente, claro, para quê tanto dramatismo, para quê o acidente? Porque sacrificar o pobre rapaz precisamente quando tanto trabalho, dedicação e noites sem dormir, finalmente começavam a dar fruto? No gabinete gostavam dele, a sua sensibilidade e ousadia criavam espaços únicos de uma beleza incrivelmente melodiosa. Se não fosse a música, a banda, poderia até já estar a tempo inteiro no gabinete. Na verdade, apesar da singularidade sonora, também a banda estava a conseguir o seu lugar e começava a ser requisitada para eventos musicais e alguns concertos.

O reencontro seria bem mais bonito, e não tão dramático, se não acontecesse o acidente. Seria melhor o reencontro acontecer na véspera do dia do suposto acidente, num bar, perto da Ribeira, onde o jovem pianista tocava com a sua banda, já noite dentro. Ela desceria as escadas entrando no bar mal iluminado. Os risos provocados pela animada conversa com os amigos não lhe permitiram sentir logo a música. Apenas quando se sentou, numa mesa entretanto deixada disponível, a saborear um Sipsmith, o seu gin preferido, é que a conversa se distanciou e a música preencheu o espaço. Que melodia tão densa, mas tão libertadora. Fazia-a esquecer as desgraças que presenciava nas aulas práticas no hospital. Abstraiu-se dos amigos, que entretanto tinham recomeçado a conversa, do local onde se encontrava e distanciou-se de todas as preocupações, de todos os rostos em sofrimento, de todas as decisões difíceis que na sua profissão teria de assumir, de todas as más notícias que teria de dar a quem apenas queria ver nela o rosto da esperança. Embalada pela melodia terminou o seu gin e dirigiu-se ao piano. Sentia uma necessidade imensa de partilhar com a banda o bem que a sua música lhe estava a fazer. Reconheceram-se imediatamente. O resto da noite foi passado a conversar, entre bebidas e atuações. Os dados estavam finalmente lançados. Acabaria por ser a sua música a cativá-la e não a gentiliza e educação com que ele tinha gerido a questão dos bilhetes duplicados. O resto da história iria ser escrita por eles, dia-a-dia, cada dia.

Esta história seria bem mais bonita, no entanto, inverosímil. A rapariga, estudante responsável, nunca sairia até tarde, sabendo que no dia seguinte teria de estar no hospital. Teria de estar 100% concentrada e desperta para aprender e para ajudar. Já o rapaz, trabalhando a tempo parcial no gabinete de arquitetura, sabia que na manhã seguinte poderia repor as horas de sono em falta. Por isso a banda expressava livremente a sua arte até bastante tarde no bar onde tocava às quartas, quintas e fins de semana. O que o rapaz não contava, ninguém contava, é que na manhã seguinte o filho de um colaborador do gabinete tivesse uma indisposição súbita e imprevisível, ou até bastante previsível uma vez que na creche onde andava, já várias crianças tinham ficado em casa nos dias anteriores. Excecionalmente foi pedido ao rapaz que fosse substituir o colega. Teria de ir à obra de reabilitação de um edifício de 4 andares na Rua da Boavista. Alguns pormenores teriam de ser nessa manhã decididos em obra e era essencial a presença de alguém da equipa projetista, caso contrário seria quase certa a alteração, pelo empreiteiro, de algumas intenções de projeto. Apesar do sono e das poucas horas de descanso, disponibilizou-se a ir. Poderia ser uma boa oportunidade para defender aquela ideia inovadora que tinha tido em projeto, mas à qual o dono da obra torceu o nariz. Quando chegou já todos o esperavam e, apesar do sorridente bom dia, não conseguiu disfarçar o olhar vidrado de sono.

No hospital, os médicos, com toda a atenção dos estudantes, usaram os seus conhecimentos e perícia para lhe salvar e tratar a mão e braço esquerdos que tinham ficado bastante maltratados na queda. Felizmente, apesar dos hematomas, não tinha traumatismo craniano, o capacete tinha cumprido a sua função e o braço e mão acabaram também por amortecer o impacto da cabeça no pavimento de pedra. Na primeira visita após a cirurgia, a rapariga deixou-se ficar um pouco mais tempo, mesmo depois dos colegas terem saído. Abeirou-se dele e, com um sorriso sincero, perguntou-lhe como se sentia, se tinha dores, se precisava de alguma coisa. Ele olhou para a mão imobilizada em ligaduras e, ganhando a coragem que lhe tinha faltado perante o médico, com o seu olhar azul perguntou delicadamente com tinha ficado a mão…se ficaria inutilizada ou se recuperaria completamente. Ela arrepiou-se quando lhe reconheceu a voz, aquela voz musical, educada e delicada, naquele olhar azul. Sorriu de novo e respondeu com toda a tranquilidade que encontrou, apesar de se sentir perturbada, que ainda tinha um longo caminho pela frente, teria de fazer fisioterapia, mas que felizmente tinha tido a sorte de ter sido operado pela melhor equipa de cirurgiões do hospital. Estava em boas mãos. Ele olhou-a nos olhos e reconhecendo-a sorriu também, mas a preocupação com a mão logo lhe tirou o sorriso dos lábios e dos olhos. Notando-lhe o azul a escurecer ela apressou-se a acrescentar nervosa e despropositadamente – felizmente é a mão esquerda… O azul tornou-se negro. Não respondeu. Não disse que era pianista e canhoto, que gostava de desenhar, que precisava daquela mão, das duas mãos. Ficaram ali, frente a frente. Ele fragilizado e ela perdida entre o pragmatismo que sempre a acompanhava e a impotência e desconcerto que sentia no momento. Os segundos em que ficaram assim, frente a frente, sem dizer nada foram suficientes para que ela se recompusesse. Desculpe, disse. Foi despropositado. A operação correu muito bem, apesar de ter ainda um longo caminho de recuperação pela frente, acredito que vai recuperar completamente.  Desculpe mais uma vez… sim, recordo-me que é canhoto, independentemente disso nunca deveria ter feito aquele comentário. Agora ela sentia-se extremamente embaraçada, sentia a cara a ferver, sentia-se como uma criança apanhada em falta. Ele notou-lhe o nervosismo, o que lhe dava algum charme, e, suavizando o olhar, perguntou como é que sabia que ele era canhoto. No comboio, respondeu, reparei que por vezes pegava num caderninho e fazia uns rabiscos, pegava na caneta com a mão esquerda. Apesar da situação, talvez porque ainda estava sedado e não tinha dores, soltou uma gargalhada. Uns rabiscos! Ela desculpou-se novamente, corando ainda mais. Que gira que ficava corada e que sexy com a bata branca, pensou, e o azul iluminou-se. Quebrada a tensão inicial descontraíram os dois. Recomposta, explicou-lhe detalhadamente a anatomia da mão, os procedimentos efetuados, os que teriam ainda de ser feitos, todos os possíveis cenários futuros (ou pelo menos aqueles que a deontologia permitia que lhe dissesse), os cuidados que teria de ter e preparava-se para dissertar sobre os novos métodos de recuperação de tecidos e ossos quando a enfermeira entrou.

Já tinha passado uma hora e quarenta minutos de viagem quando foi anunciada a aproximação do comboio a Coimbra, onde faria uma paragem. A escritora levantou-se, vestiu o casaco e tirou a mala da bagageira por cima do seu lugar. A filha arrumou o caderno de desenho e o lápis na mochila e vestiu também o casaco, já era noite e deveria ter arrefecido. Olhou para trás, os jovens continuavam absortos nas suas atividades, sem se falarem. Ela continuava a ler o seu livro e ele fazia uns rabiscos num caderninho. Seriam desenhos? Ideias de projeto? Seriam notas musicais e o esboço de uma nova música? Não conseguiu perceber. Sairia em Coimbra e os jovens prosseguiriam viagem, até Aveiro talvez, ou Porto ou mesmo Braga, o término da viagem. Provavelmente não voltariam a trocar palavras e a história não passaria de um devaneio seu. Saiu com a filha, os dois jovens permaneceram no comboio, seguindo viagem. A rapariga, sentada à janela, levantou os olhos do livro enquanto o comboio reiniciava a marcha, olhou para fora e sorriu ao ver aquela menina que tinha acabado de sair do comboio e avançava na plataforma em direção à saída, de mão dada com a mãe. Recordou-se de quando era nova e também ela fez uma viagem de comboio com a sua mãe, nessa altura sentia que as viagens de comboio tinham sempre algo de místico. Na plataforma, mãe e filha, viram o comboio afastar-se em direção ao norte, até desaparecer num ponto de luz.

Passava da hora de jantar quando o comboio parou em Braga. O rapaz levantou-se e, delicada e educadamente, deu passagem à rapariga. Ela agradeceu corando ligeiramente. Durante a viagem tinha reparado que ocasionalmente ele fazia uns rabiscos num caderninho. Como era canhoto e ela estava à sua esquerda, não tinha conseguido perceber de que se tratava. A sua curiosidade tinha-a levado por diversas vezes a desviar o olhar das letras do seu livro e a espreitar para o que o rapaz fazia, mas sem que a mesma tivesse sido satisfeita, bem pelo contrário. A sua curiosidade ficou ainda mais aguçada quando ela reparou na cicatriz da mão que, com agilidade, manuseava a caneta. Nunca ficava indiferente perante uma cicatriz. Saíram juntos do comboio, ele atrás dela. Na plataforma pararam e ficaram por momentos frente a frente. Constrangidos sorriram, ambos envergonhados, e seguiram caminho lado a lado. Dirigiram-se para a praça de táxis e, chegando ao fim da fila, delicada e educadamente cederam o lugar um ao outro. Tanta cerimónia, tanto faça favor, depois de uma viagem inteira lado a lado, provocou neles um ataque de riso. Conversando, acabaram por perceber que iam para a mesma zona da cidade, podiam partilhar o táxi. Quando chegou a sua vez, entraram os dois para o banco de trás do táxi, conversariam melhor lado a lado. O táxi arrancou com os dois jovens deixando a estação para trás. O comboio permaneceu na linha, guardando os silêncios da viagem.

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  Ouvi o silvo da chaleira ao lume, a água fervia, o chá ficaria pronto num instante… Mas não tenho por costume fazer chá, nem oferecer ch...