Acabaram as cerimónias fúnebres,
agora podemos voltar atrás?! Podemos rebobinar a fita da vida e corrigir?! Houve
um erro de casting, um erro no guião, um erro, definitivamente um erro. Não
acredito que aconteceu, não poderia ter acontecido, é impensável e
incompreensível a tua morte, pai.
Naqueles dias em que o teu corpo
repousava na igreja ainda te tinha. Olhava para ti sereno, com as 9 rosas no
teu colo, envoltas pelos teus braços protetores de pai, marido e avô, e
esperava que acordasses. As cerimónias foram lindas, tão cheias de significado,
tão cheias de amor. A igreja estava cheia, completamente cheia. No altar,
acompanhando-te e acompanhando o teu filho, não houve espaço para tantos,
bispos, padres, diáconos e acólitos, mais de 50, vindos de todo o país, dos
Açores e da Madeira. És importante! Não é vaidade, é orgulho. Sei que na tua
humildade não te vias assim, importante, mas a verdade é que foi precisamente a
tua humildade, generosidade e honestidade que sempre cativaram quem te
conheceu. Humildemente tornaste-te tão grande, tão querido, tão acarinhado, tão
admirado. Foi a herança maior que nos deixaste, o exemplo de humildade, de
generosidade e de honestidade. E o amor!
Agora tenho-te de uma forma
diferente, tenho-te todo em mim. Repara que te trato por tu, nunca te tratei
assim, não por distanciamento, por reverência, mas agora que ficaste em mim já
não faz sentido invocar-te de outra forma.
As cerimónias acabaram, ficámos
sensibilizados e muito orgulhosos por saber e sentir o quanto és importante,
para tantos, mas agora podemos voltar atrás?
Voltar ao tempo antes daquelas
gotas de chuva terem caído assim que soube da tua partida, gotas de chuva que
se misturaram com as minhas lágrimas numa torrente de tristeza. Voltar ao dia em
que te fui visitar e me seguraste a mão, naquele último dia em que nos olhámos.
Queria voltar atrás e apertar-te a mão com mais força, segurar-te e não te
deixar ir, como me seguravas a mão quando eu era criança e corria a teu lado
para acompanhar o passo rápido e decidido de quem sabe o seu caminho.
Voltar ao último natal, às
últimas férias juntos. Reviver os momentos de convívio, de conversas e de
diversão. Queria tornar a ver aquele brilho no olhar e o sorriso discreto e
malandro de quem com os netos ganhou o direito de voltar a fazer diabruras.
Voltar ao dia em que te pedi que ensinasses a minha filha a andar de bicicleta.
E ensinaste-a. Apesar das dores de costas amparaste-a e foi contigo a sua primeira
pedalada livre e autónoma, como contigo tinha sido a minha primeira pedalada
livre e autónoma numa tarde de verão há 45 anos. Voltar ao dia em que radiante
pegaste no teu neto pela primeira vez, voltar ao dia em que orgulhoso me
acompanhaste ao altar.
Voltar à infância. Aos dias que
me levavas e me ias buscar à escola. Aos dias em que apenas queria a resposta a
uma pergunta simples, mas insistias que consultasse a enciclopédia e que
encontrasse eu a resposta e aprendesse muito mais. Voltar ao dia em que me
pegaste na mão e me levaste a conhecer o meu irmão recém-nascido. Voltar aos
dias em que me levavas às cavalitas e em que fazias de cavalinho e nos
transportavas, a mim e à minha irmã, às voltas pela casa. Voltar ao tempo em
que me chamavam “a menina pescadinha do papá”. Queria voltar atrás e voltar a
ter pai e mãe, os 2 pilares da minha vida.
E se eu pudesse voltar atrás
voltava a viver tudo de igual forma, com as alegrias e com as tristezas, com as
conquistas e com os erros, porque foi com eles que aprendemos e fortalecemos a
nossa relação. Se eu pudesse voltar àquele último dia não teria dito palavras
diferentes, não teria sido capaz. Nunca fomos de expressar sentimentos, mas
sinto que nada ficou por dizer. O que não verbalizámos expressámos com o olhar,
com os gestos, com as ações.
Se eu pudesse voltar atrás queria
mudar aquele grande erro, o que não podia ter acontecido, o impensável, o
incompreensível, a tua morte, pai.