Blue Monday




Levantei a cabeça e olhei para o grande vão da janela à minha frente. A imagem da lua, cheia e avermelhada, atravessou o vidro e refletiu-se nos meus olhos. Hipnotizada não deixei de a olhar, ali, brilhando sozinha na escuridão do firmamento, expondo-se, insinuando-se, provocando-me. De madrugada tinha-se eclipsado, mas neste momento apresentava-se com todo o seu brilho e esplendor. Permiti-me ficar por momentos a admirar o belíssimo e gigante corpo celeste na minha frente, a esfera de luz na superfície negra do vidro que começava a embaciar.

A temperatura na sala tinha subido consideravelmente, contrastando com o ar gélido da rua. Os movimentos dos corpos tinham criado uma atmosfera morna e algo empastelada em suor. A música que fora abafada pelos gemidos fazia-se de novo ouvir. Da sala ao lado ecoavam gritinhos de prazer e satisfação que se sobrepunham à música ritmada. A contemplação da lua, que me tinha deixado numa quase levitação, foi interrompida pela consciência do corpo, dos músculos duros e doridos da posição em que me encontrava e do cansaço acumulado nos últimos minutos.

A marca das minhas mãos ficou estampada no chão negro, carimbada com suor. Lembrei-me de Banksy e das impressões que vai deixando nos muros e paredes das cidades, mas esta pintura era minha. Olhei as manchas no chão. Duas manchas bem definidas, as palmas das mãos e dedos abertos, fazendo força contra o chão. De joelhos respirei fundo e recuperei o fôlego. O corpo cansado, quente e encharcado pedia descanso, mas ele queria mais, só mais uma vez, dizia, vá lá, só mais uma.

Apesar de ser considerado o dia mais triste do ano – blue Monday- até estava a correr bem e não iria agora deitar tudo a perder: cravei de novo as mãos no chão, sobre as marcas anteriormente deixadas. Os pés elevados recuaram com a subida dos joelhos e da cintura. Em posição de prancha fleti os braços e fiz novo conjunto de dez flexões, o último. Consegui, apesar das últimas terem sido um pouco aldrabadas. Soltei os pés do TRX e descansei, tinha terminado mais uma aula, só faltavam os alongamentos. O instrutor estava satisfeito e nós também, apesar de exaustos. Na sala ao lado continuava a aula de Zumba, com os seus gritinhos e música ritmada.

Ver com o coração




O portão verde metálico foi aberto por uma pequenina freira de sorriso rasgado e acentuada pronúncia castelhana. Entrámos no edifício com uma calorosa receção de boas vindas. A minha filha, Sofia, avançou decidida para a sala de convívio, conhecia bem o espaço. Deixei-me ficar para trás e, enquanto percorria o corredor, apenas pensava naquele cheiro desagradável, a casas velhas e a desinfetante, que senti assim que transpus a porta de entrada. Parei à entrada da sala de convívio. Encostada à ombreira da porta cumprimentei com um boa tarde, dirigido a todas e a ninguém. Obtive algumas respostas, sorrisos e olhares que se desviaram do ecrã da televisão e se cruzaram com o meu por instantes. A Sofia percorria a sala, distribuindo carinho a cada uma e conversando descontraidamente, com a sua inata capacidade de comunicar, mesmo com aqueles que aparentemente não comunicam.

Resisti ao impulso de ficar a olhar para a televisão e percorri a sala com o olhar. Os seus corpos retorcidos e incapazes repousavam em macas e em cadeiras adaptadas. Uma ou duas, poucas, cujos corpos foram poupados, sentavam-se em vulgares cadeiras de madeira ou ajudavam nas pequenas tarefas, transportando jarros de água antes de se sentarem a ver o programa transmitido pela televisão.

Os olhares vagos e vazios das doentes mais profundas não refletiam as imagens da televisão e não me aproximei o suficiente para vislumbrar neles a centelha de sonhos vividos num mundo interior e o brilho da alegria pela visita e ternura dos gestos e palavras que a minha filha lhes dirigiu. Aqueles gestos e palavras que não fui capaz de oferecer, se o tivesse feito sairiam estranhos, forçados, desajeitados, tão contrários à naturalidade e espontaneidade com que a Sofia os distribui. Gestos e palavras por ela presenteados, sem olhar aos corpos presos, inertes ou em espasmos, sem olhar à aparente incapacidade de dialogar, sem olhar às diferenças, mas olhando, vendo, muito para além das deformidades, das enfermidades. Na ausência, ela vê a presença, de uma vida, de um ser, de um como nós. Olhando com o coração ela vê o que eu não me proponho ver e atinge uma grandeza imensa que nos seus parcos 12 anos me fazem pequenina, mas grande de orgulho e de amor.

Alguns olhares são vivos, atentos e perspicazes, ávidos por absorver informação, ansiosos por comunicação, radiosos por atenção. Chamada, entro na sala e troco umas palavras com algumas das doentes. As frases são curtas, as minhas e as delas. As minhas porque não tenho palavras para mais, as delas…talvez porque a minha conversa desinteressante, de circunstância, não as estimule, ou talvez porque o esforço de articular as palavras de modo a que eu as entenda se torna penoso e frustrante, apesar da prontidão da Sofia a ajudar-me interpretar alguma sonoridade impercetível aos meus ouvidos duros e pouco habituados a ouvir para além do sentido das palavras.

A hora da merenda, a meio da tarde, já tinha passado e ainda faltava muito para o jantar. Desta vez a visita foi rápida, a minha filha não ficou para ajudar na refeição, como tantas vezes o fez quando, durante anos, nas férias de verão acompanhou a avó no seu voluntariado à casa das religiosas de acolhimento de deficientes profundas. A avó, com todo o seu amor e mãos experientes de enfermeira, ensinou-a a cuidar, a dar de comer, a pentear quem não o consegue fazer com as próprias mãos. Ensinou os gestos, mas a vontade, a capacidade de ver para além do que os olhos observam, já tinha florido. As duas, avó e neta, deram àquelas raparigas, algumas já de cabelos grisalhos, muito mais do que a refeição, do que os cabelos bem penteados, deram, e continuam a dar, um olhar, um sorriso, uma palavra, um gesto de carinho, momentos de alegria, vividos em conjunto, descontraidamente, sem obrigações, sem receios, sem complexos e sem tabus.

Chá, café...ou um copo de vinho tinto

  Ouvi o silvo da chaleira ao lume, a água fervia, o chá ficaria pronto num instante… Mas não tenho por costume fazer chá, nem oferecer ch...