O portão verde metálico foi
aberto por uma pequenina freira de sorriso rasgado e acentuada pronúncia
castelhana. Entrámos no edifício com uma calorosa receção de boas vindas. A
minha filha, Sofia, avançou decidida para a sala de convívio, conhecia bem o
espaço. Deixei-me ficar para trás e, enquanto percorria o corredor, apenas
pensava naquele cheiro desagradável, a casas velhas e a desinfetante, que senti
assim que transpus a porta de entrada. Parei à entrada da sala de convívio.
Encostada à ombreira da porta cumprimentei com um boa tarde, dirigido a todas e a ninguém. Obtive algumas respostas,
sorrisos e olhares que se desviaram do ecrã da televisão e se cruzaram com o
meu por instantes. A Sofia percorria a sala, distribuindo carinho a cada uma e
conversando descontraidamente, com a sua inata capacidade de comunicar, mesmo
com aqueles que aparentemente não comunicam.
Resisti ao impulso de ficar a
olhar para a televisão e percorri a sala com o olhar. Os seus corpos retorcidos
e incapazes repousavam em macas e em cadeiras adaptadas. Uma ou duas, poucas,
cujos corpos foram poupados, sentavam-se em vulgares cadeiras de madeira ou
ajudavam nas pequenas tarefas, transportando jarros de água antes de se
sentarem a ver o programa transmitido pela televisão.
Os olhares vagos e vazios das
doentes mais profundas não refletiam as imagens da televisão e não me aproximei
o suficiente para vislumbrar neles a centelha de sonhos vividos num mundo
interior e o brilho da alegria pela visita e ternura dos gestos e palavras que a
minha filha lhes dirigiu. Aqueles gestos e palavras que não fui capaz de
oferecer, se o tivesse feito sairiam estranhos, forçados, desajeitados, tão
contrários à naturalidade e espontaneidade com que a Sofia os distribui.
Gestos e palavras por ela presenteados, sem olhar aos corpos presos, inertes ou
em espasmos, sem olhar à aparente incapacidade de dialogar, sem olhar às
diferenças, mas olhando, vendo, muito para além das deformidades, das
enfermidades. Na ausência, ela vê a presença, de uma vida, de um ser, de um
como nós. Olhando com o coração ela vê o que eu não me proponho ver e atinge
uma grandeza imensa que nos seus parcos 12 anos me fazem pequenina, mas grande
de orgulho e de amor.
Alguns olhares são vivos, atentos
e perspicazes, ávidos por absorver informação, ansiosos por comunicação,
radiosos por atenção. Chamada, entro na sala e troco umas palavras com algumas
das doentes. As frases são curtas, as minhas e as delas. As minhas porque não
tenho palavras para mais, as delas…talvez porque a minha conversa
desinteressante, de circunstância, não as estimule, ou talvez porque o esforço
de articular as palavras de modo a que eu as entenda se torna penoso e
frustrante, apesar da prontidão da Sofia a ajudar-me interpretar alguma
sonoridade impercetível aos meus ouvidos duros e pouco habituados a ouvir para
além do sentido das palavras.
A hora da merenda, a meio da
tarde, já tinha passado e ainda faltava muito para o jantar. Desta vez a visita
foi rápida, a minha filha não ficou para ajudar na refeição, como tantas vezes o
fez quando, durante anos, nas férias de verão acompanhou a avó no seu
voluntariado à casa das religiosas de acolhimento de deficientes profundas. A
avó, com todo o seu amor e mãos experientes de enfermeira, ensinou-a a
cuidar, a dar de comer, a pentear quem não o consegue fazer com as próprias
mãos. Ensinou os gestos, mas a vontade, a capacidade de ver para além do que os
olhos observam, já tinha florido. As duas, avó e neta, deram àquelas raparigas,
algumas já de cabelos grisalhos, muito mais do que a refeição, do que os
cabelos bem penteados, deram, e continuam a dar, um olhar, um sorriso, uma
palavra, um gesto de carinho, momentos de alegria, vividos em conjunto, descontraidamente,
sem obrigações, sem receios, sem complexos e sem tabus.
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