Equilíbrio




Transfiro o peso do corpo para o pé esquerdo descalço agarrando o chão. Cruzo a perna direita em volta da esquerda juntando as coxas, elevo os braços, aperto a barriga, contraio as nádegas, relaxo os ombros, concentro o olhar num ponto fixo e tento permanecer na posição, em equilíbrio. Os segundos passam, passam também minutos. Os ombros contraem-se, a barriga relaxa, o olhar distrai-se, os músculos doem, perde-se a postura, perde-se o equilíbrio. Relaxo, respiro fundo, descontraio os músculos doridos e volto ao início. Novamente na postura tento encontrar o verdadeiro equilíbrio, aquele ponto em que o corpo consegue permanecer na posição sem dor, imóvel. Desfoco o olhar e tento esvaziar a mente, concentrar-me apenas no corpo, na respiração. Tarefa árdua, a minha mente deve ser muito rebelde, por vontade própria põe-se a divagar, foge, os pensamentos surgem, interferem com a respiração, distraem-me. Perco novamente o equilíbrio, volto ao início e retomo a posição mais uma vez, as vezes que forem necessárias. Um dia hei-de conseguir encontrar o meu ponto de equilíbrio, um dia conseguirei permanecer na posição de equilíbrio na aula de Yoga.

Não é fácil atingir o equilíbrio, físico, mental e emocional e aí permanecer. As solicitações, as distrações e as mudanças constantes tornam essa tarefa um desafio permanente.

Em criança ansiamos ser adultos, quando nos tornamos adultos desejamos voltar a ter o tempo e a ausência de responsabilidades que tínhamos em criança. Desejamos ter alguém, desejamos liberdade, desejamos filhos, desejamos tempo, desejamos trabalho, desejamos descanso, desejamos dinheiro, desejamos amor, desejamos… e os nossos desejos são sempre contraditórios.

O equilíbrio físico, mental e emocional encontra-se por vezes quando conseguimos equilibrar nos pratos da balança situações, estados, sentimentos e acontecimentos completamente antagónicos. Se, por um lado, há quem apenas consiga o equilíbrio na sua vida andando sempre pela linha reta que lhe garanta manter o foco num objetivo bem definido, há quem, como eu, por outro lado, só consiga manter o equilíbrio vivendo a tocar os opostos.

Por essa mesma razão tento encontrar a felicidade entre o desejo e a realização, atingindo um equilíbrio. Mas a mente é rebelde, tem vontade própria, divaga, foge, quer mais, quer diferente, distrai-me e perco novamente o equilíbrio. O exercício de controlar a mente é muito mais difícil que o exercício de controlar o corpo, a mente não tem as barreiras nem os limites que o corpo tem. Felizmente! A mente quer-se livre porque é libertando-se que se supera e atinge grandeza. O exercício de controlo da mente não passará por a condicionar, por a limitar, mas por a deixar expandir-se infinitamente, libertando-se de fronteiras impostas e, em oposição, aprender também como canalizar o seu foco, centrando-se num único ponto finito, mínimo, dentro de nós.

Tenho conseguido atingir equilíbrio físico, mental e emocional alternando aulas de Yoga com aulas de Fight.

No Fight, esmurraço, pontapeio, dou joelhadas e cotoveladas e não paro de pular e saltitar, nunca permanecendo imóvel. O corpo explode em movimentos rápidos, libertando toda a energia. A mente voa, livre, não a contrario.

A serenidade, paz e interiorização do Yoga em equilíbrio com a dinâmica, explosão e exteriorização do Fight. As duas me libertam e as duas me renovam energias, complementam-se, completam-me.

A moldura




Acordou muito antes do despertador ter tocado. Era o seu primeiro dia no novo emprego e queria fazer boa figura arranjando-se com aprumo e chegando antes da hora. Além disso, o nervosismo despertara-a e não conseguia dormir mais. Tinha percorrido um longo e difícil caminho para conseguir aquele emprego: o concurso nacional, as provas, as entrevistas e os muitos e variados testes que avaliaram, não só a sua capacidade intelectual e os conhecimentos necessários ao desempenho da função, como o seu equilíbrio mental e harmonia emocional. Foram meses de espera, de deslocações, de estudo e de muitas orações a S. José, para que do alto intercedesse a seu favor e conseguisse o tal emprego. Bem sabia que o poder de S. José era insignificante relativamente à vantagem de ter alguns contactos junto da administração, mas na falta destes não estava em posição de menosprezar o poder divino. Quando recebeu a carta registada com a classificação do concurso e a informação que tinha sido a candidata vencedora, primeiro ficou eufórica, depois incrédula, por fim experimentou uma sensação de estranheza quando viu na classificação a lista com os candidatos desistentes. Bem, não seria isso que lhe iria estragar a alegria e o sentimento de triunfo que finalmente experimentava na sua vida.

Assim que chegou ao seu novo posto de trabalho constatou que afinal não era a única a chegar antes da hora, já algumas colegas ocupavam os seus lugares. Teria de confirmar o horário de trabalho, achava estranho tanta gente começar antes das 9:00 horas, não era isso que se dizia daquela instituição. Foi recebida com simpatia, apresentada a toda a equipa e encaminhada para a sala onde iria finalmente exercer a profissão para a qual dedicara tantos anos de estudo. Foi-lhe destinada uma secretária, perpendicular à minúscula janela, que não poderia abrir pois o ruído do trânsito da movimentada rua, causaria incómodo e perturbaria a concentração, um bloco de gavetas com fechadura onde poderia colocar o material de trabalho e os pertences pessoais, um armário alto, parte das prateleiras da parede e, claro, a cadeira de rodinhas com apoios de braços e de costas altas reguláveis.

Estava maravilhada, era tudo novo e tão diferente do seu antigo emprego como caixa de supermercado. Passados os primeiros 15 minutos de fascínio, sentada na cadeira que estava longe de ser nova, com o tecido castanho muito coçado e as rodinhas que de tão gastas já não deslizavam, observou o espaço em seu redor. Bolas, como era feio! Para além do amontoado de pastas e processos em cima dos armários, secretárias e chão, tendo apenas livre 1 m2 de chão para esticar as pernas, o mobiliário pseudo-vintage anos 80 em tons de cinzento, verde seco e castanho, era pavoroso. Por trás da sua secretária havia um painel de cortiça com alguns mapas e cópias de legislação, mas ainda com algum espaço livre. Bem, já que seria ali que passaria grande parte do seu dia, resolveu dar-lhe um toque pessoal e colocar alguns elementos que a alegrassem e lhe transmitissem bem-estar, o que com certeza aumentaria o rendimento do seu trabalho.

No dia seguinte, o seu segundo dia de trabalho, chegou já passava das 9:00 horas. Do saco de papel que tinha trazido de casa tirou fotografias, desenhos, um pequeno poster e uma moldura com uma foto sua com os filhos. No espaço livre no painel de cortiça foi colocando com rigor geométrico e equilíbrio estético, as fotos dos filhos na praia, no primeiro dia de aulas e no torneio de futebol, assim como alguns desenhos que os filhos lhe tinham dedicado e o poster. Aquela foto especial tirada no dia da mãe, em que aparece abraçada pelos filhos, colocada na moldura feita pelo mais novo na infantil, colocou em cima da secretária, num cantinho, à frente da pilha dos processos. Satisfeita pensou que afinal ali poderia ser feliz, só tinha de se abstrair do resto e alternar o foco entre o trabalho e aquelas fotos e desenhos que lhe proporcionavam uma sensação tão boa.

Ao terceiro dia começava a desconfiar da razão de tão elevado número de candidatos desistentes ao lugar que ela agora ocupava. Algo de muito estranho se passava naquela instituição. Era como se tivesse entrado num mundo paralelo onde o surreal naturalmente se tornava realidade e os comportamentos aberrantes de alguns elementos eram tidos como caraterísticas de comprovada competência, caso contrário como poderiam continuar a ocupar aqueles cargos?! Ela própria passou a ser cenário e testemunha de situações que já tinha ouvido, mas que nunca tinha acreditado fossem reais, tinha a convicção que eram fruto da imaginação e inveja alheia.

Ao quarto dia recebeu a instrução que teria de tirar as fotos e desenhos colocados no painel de cortiça por trás de si…assim como a moldura infantilizada e imprópria na dignificação do local de trabalho!

Não chegou a ouvir as razões plausíveis para tal decisão. A parede fica mais bonita e limpinha sem aquela papelada toda colorida, ponto. Não pode haver fotos e desenhos nas paredes, ponto. Elementos pessoais não podem ser exposto no local de trabalho, ponto. Humm, então é isso. Pensou que a febre da aplicação da nova lei de proteção de dados estava a ser levada ao ridículo, mas como era nova na instituição e o seu poder estava reduzido a zero, tirou as fotos, os desenhos e o poster do painel de cortiça, ficando novamente a superfície castanha à vista, lindíssima... Mas a moldura, a moldura que o seu mais novo tinha feito na infantil, na classe dos patinhos de bibe amarelo, com a foto especial tirada no dia da mãe, em que o abraço dos filhos a confortava cada vez que a observava, permaneceu em cima da secretária. Era o seu grito de rebeldia, a sua ligação à terra, a linha que a manteria à superfície, não a deixando submergir nas profundezas da lama em que a instituição afundava os seus funcionários. Colocou os phones nos ouvidos e ficou a ouvir o hit do momento: Shallow!

O armário




Fechou o armário onde guarda alguns processos, ninguém sabe exatamente que processos, se é que são processos. Rodou a chave, mas manteve-a na fechadura. Não se tratando da guarda de documentos ou objetos pessoais, o acesso ao interior do armário tem de se manter sempre e em qualquer situação disponível, mesmo na sua ausência. No entanto não se iria embora por uns dias de férias sem que deixasse salvaguardada a quase garantia de que ninguém o tentaria abrir. No caso de alguém, incauto, abrir o misterioso armário, na tentativa de aí procurar algum processo em falta, localizado em parte incerta, seria facilmente detetado e, no seu regresso, do que se esperava serem dias repousantes, a bronca seria grande… Já se imagina a gritaria, as acusações… adiante. Sorriu satisfeita e orgulhosa da sua própria inteligência, só uma mente rebuscada e com Q.I. muito acima da média se lembraria de tal mecanismo, tão simples, mas tão eficaz na dissuasão de qualquer intenção de abertura do armário. Ninguém lhe poderia apontar o dedo, ninguém a poderia acusar de negar o acesso aos processos, documentos e demais desconhecidos elementos guardados no armário, afinal a chave tinha ficado na fechadura!

Não é que alguém se interesse realmente pelo armário, igual a tantos outros, feio, metálico, cinzento, nem, tão pouco, pelo seu conteúdo. Aliás, nem pelo armário nem por aquele gabinete onde só se entra por força da obrigação e nunca sem antes respirar fundo e vestir a capa do seu ser mais zen. Eventualmente a falta de interesse poderá estar precisamente no desconhecimento do seu conteúdo. Sabe-se lá que indecifráveis, surpreendentes e talvez valiosos objetos possam estar secreta e religiosamente guardados dentro do armário, à espera que uma força superior surja das trevas e resolva os seus enigmas.

Quem já viu, quem teve a sorte, ou a ousadia, de olhar para dentro do armário, num qualquer raro momento da sua abertura, diz que é apenas um armário, igual a todos os outros, feio, cinzento e com prateleiras metálicas… sim, mas o que contém? Perguntamos a medo, com receio que só perante o ato de formular a pergunta possamos ser atingidos por um raio, um terramoto, pela lava de um vulcão, pelo próprio Urano chispando faíscas pelos olhos. O que contém? Pastas, processos, fotocópias, documentos vários, enfim, papelada, é isso, nada que brilhe, nada de códigos secretos, nada de documentos confidenciais, nada de capas com siglas de agências internacionais de espionagem…

O destino é matreiro e irónico e por essa mesma razão, precisamente nesses dias de ausência, foi necessário procurar um processo antigo, desaparecido, localizado em parte incerta. Foi tudo remexido, centenas de pastas e processos revirados e revistos e nem vestígios do desaparecido. Já quase tinham desistido de o encontrar quando alguém se lembra: o armário! O armário?! Perguntam a medo… Mas tens a certeza?! Sim, o armário, pode lá estar, ninguém sabe exatamente o que contém, esse pode estar lá.

Corajosa, assumindo o risco, dirigiu-se ao alto, feio, metálico e cinzento armário, igual a todos os outros. Naturalmente a chave estava na fechadura, seria só rodar e abrir as duas portas, num movimento pivotante, expondo o seu interior. Estica o braço e, quando a mão toca a chave, estaca, gélida. Pensa no que teria acontecido se tivesse aberto o armário, imagina a gritaria, as acusações. Respira fundo e solta uma gargalhada. Felizmente viu a tempo os dois bocadinhos de fita-cola com que as portas do armário tinham sido seladas!


Nota: esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência...

Chá, café...ou um copo de vinho tinto

  Ouvi o silvo da chaleira ao lume, a água fervia, o chá ficaria pronto num instante… Mas não tenho por costume fazer chá, nem oferecer ch...