O armário




Fechou o armário onde guarda alguns processos, ninguém sabe exatamente que processos, se é que são processos. Rodou a chave, mas manteve-a na fechadura. Não se tratando da guarda de documentos ou objetos pessoais, o acesso ao interior do armário tem de se manter sempre e em qualquer situação disponível, mesmo na sua ausência. No entanto não se iria embora por uns dias de férias sem que deixasse salvaguardada a quase garantia de que ninguém o tentaria abrir. No caso de alguém, incauto, abrir o misterioso armário, na tentativa de aí procurar algum processo em falta, localizado em parte incerta, seria facilmente detetado e, no seu regresso, do que se esperava serem dias repousantes, a bronca seria grande… Já se imagina a gritaria, as acusações… adiante. Sorriu satisfeita e orgulhosa da sua própria inteligência, só uma mente rebuscada e com Q.I. muito acima da média se lembraria de tal mecanismo, tão simples, mas tão eficaz na dissuasão de qualquer intenção de abertura do armário. Ninguém lhe poderia apontar o dedo, ninguém a poderia acusar de negar o acesso aos processos, documentos e demais desconhecidos elementos guardados no armário, afinal a chave tinha ficado na fechadura!

Não é que alguém se interesse realmente pelo armário, igual a tantos outros, feio, metálico, cinzento, nem, tão pouco, pelo seu conteúdo. Aliás, nem pelo armário nem por aquele gabinete onde só se entra por força da obrigação e nunca sem antes respirar fundo e vestir a capa do seu ser mais zen. Eventualmente a falta de interesse poderá estar precisamente no desconhecimento do seu conteúdo. Sabe-se lá que indecifráveis, surpreendentes e talvez valiosos objetos possam estar secreta e religiosamente guardados dentro do armário, à espera que uma força superior surja das trevas e resolva os seus enigmas.

Quem já viu, quem teve a sorte, ou a ousadia, de olhar para dentro do armário, num qualquer raro momento da sua abertura, diz que é apenas um armário, igual a todos os outros, feio, cinzento e com prateleiras metálicas… sim, mas o que contém? Perguntamos a medo, com receio que só perante o ato de formular a pergunta possamos ser atingidos por um raio, um terramoto, pela lava de um vulcão, pelo próprio Urano chispando faíscas pelos olhos. O que contém? Pastas, processos, fotocópias, documentos vários, enfim, papelada, é isso, nada que brilhe, nada de códigos secretos, nada de documentos confidenciais, nada de capas com siglas de agências internacionais de espionagem…

O destino é matreiro e irónico e por essa mesma razão, precisamente nesses dias de ausência, foi necessário procurar um processo antigo, desaparecido, localizado em parte incerta. Foi tudo remexido, centenas de pastas e processos revirados e revistos e nem vestígios do desaparecido. Já quase tinham desistido de o encontrar quando alguém se lembra: o armário! O armário?! Perguntam a medo… Mas tens a certeza?! Sim, o armário, pode lá estar, ninguém sabe exatamente o que contém, esse pode estar lá.

Corajosa, assumindo o risco, dirigiu-se ao alto, feio, metálico e cinzento armário, igual a todos os outros. Naturalmente a chave estava na fechadura, seria só rodar e abrir as duas portas, num movimento pivotante, expondo o seu interior. Estica o braço e, quando a mão toca a chave, estaca, gélida. Pensa no que teria acontecido se tivesse aberto o armário, imagina a gritaria, as acusações. Respira fundo e solta uma gargalhada. Felizmente viu a tempo os dois bocadinhos de fita-cola com que as portas do armário tinham sido seladas!


Nota: esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência...

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