A moldura




Acordou muito antes do despertador ter tocado. Era o seu primeiro dia no novo emprego e queria fazer boa figura arranjando-se com aprumo e chegando antes da hora. Além disso, o nervosismo despertara-a e não conseguia dormir mais. Tinha percorrido um longo e difícil caminho para conseguir aquele emprego: o concurso nacional, as provas, as entrevistas e os muitos e variados testes que avaliaram, não só a sua capacidade intelectual e os conhecimentos necessários ao desempenho da função, como o seu equilíbrio mental e harmonia emocional. Foram meses de espera, de deslocações, de estudo e de muitas orações a S. José, para que do alto intercedesse a seu favor e conseguisse o tal emprego. Bem sabia que o poder de S. José era insignificante relativamente à vantagem de ter alguns contactos junto da administração, mas na falta destes não estava em posição de menosprezar o poder divino. Quando recebeu a carta registada com a classificação do concurso e a informação que tinha sido a candidata vencedora, primeiro ficou eufórica, depois incrédula, por fim experimentou uma sensação de estranheza quando viu na classificação a lista com os candidatos desistentes. Bem, não seria isso que lhe iria estragar a alegria e o sentimento de triunfo que finalmente experimentava na sua vida.

Assim que chegou ao seu novo posto de trabalho constatou que afinal não era a única a chegar antes da hora, já algumas colegas ocupavam os seus lugares. Teria de confirmar o horário de trabalho, achava estranho tanta gente começar antes das 9:00 horas, não era isso que se dizia daquela instituição. Foi recebida com simpatia, apresentada a toda a equipa e encaminhada para a sala onde iria finalmente exercer a profissão para a qual dedicara tantos anos de estudo. Foi-lhe destinada uma secretária, perpendicular à minúscula janela, que não poderia abrir pois o ruído do trânsito da movimentada rua, causaria incómodo e perturbaria a concentração, um bloco de gavetas com fechadura onde poderia colocar o material de trabalho e os pertences pessoais, um armário alto, parte das prateleiras da parede e, claro, a cadeira de rodinhas com apoios de braços e de costas altas reguláveis.

Estava maravilhada, era tudo novo e tão diferente do seu antigo emprego como caixa de supermercado. Passados os primeiros 15 minutos de fascínio, sentada na cadeira que estava longe de ser nova, com o tecido castanho muito coçado e as rodinhas que de tão gastas já não deslizavam, observou o espaço em seu redor. Bolas, como era feio! Para além do amontoado de pastas e processos em cima dos armários, secretárias e chão, tendo apenas livre 1 m2 de chão para esticar as pernas, o mobiliário pseudo-vintage anos 80 em tons de cinzento, verde seco e castanho, era pavoroso. Por trás da sua secretária havia um painel de cortiça com alguns mapas e cópias de legislação, mas ainda com algum espaço livre. Bem, já que seria ali que passaria grande parte do seu dia, resolveu dar-lhe um toque pessoal e colocar alguns elementos que a alegrassem e lhe transmitissem bem-estar, o que com certeza aumentaria o rendimento do seu trabalho.

No dia seguinte, o seu segundo dia de trabalho, chegou já passava das 9:00 horas. Do saco de papel que tinha trazido de casa tirou fotografias, desenhos, um pequeno poster e uma moldura com uma foto sua com os filhos. No espaço livre no painel de cortiça foi colocando com rigor geométrico e equilíbrio estético, as fotos dos filhos na praia, no primeiro dia de aulas e no torneio de futebol, assim como alguns desenhos que os filhos lhe tinham dedicado e o poster. Aquela foto especial tirada no dia da mãe, em que aparece abraçada pelos filhos, colocada na moldura feita pelo mais novo na infantil, colocou em cima da secretária, num cantinho, à frente da pilha dos processos. Satisfeita pensou que afinal ali poderia ser feliz, só tinha de se abstrair do resto e alternar o foco entre o trabalho e aquelas fotos e desenhos que lhe proporcionavam uma sensação tão boa.

Ao terceiro dia começava a desconfiar da razão de tão elevado número de candidatos desistentes ao lugar que ela agora ocupava. Algo de muito estranho se passava naquela instituição. Era como se tivesse entrado num mundo paralelo onde o surreal naturalmente se tornava realidade e os comportamentos aberrantes de alguns elementos eram tidos como caraterísticas de comprovada competência, caso contrário como poderiam continuar a ocupar aqueles cargos?! Ela própria passou a ser cenário e testemunha de situações que já tinha ouvido, mas que nunca tinha acreditado fossem reais, tinha a convicção que eram fruto da imaginação e inveja alheia.

Ao quarto dia recebeu a instrução que teria de tirar as fotos e desenhos colocados no painel de cortiça por trás de si…assim como a moldura infantilizada e imprópria na dignificação do local de trabalho!

Não chegou a ouvir as razões plausíveis para tal decisão. A parede fica mais bonita e limpinha sem aquela papelada toda colorida, ponto. Não pode haver fotos e desenhos nas paredes, ponto. Elementos pessoais não podem ser exposto no local de trabalho, ponto. Humm, então é isso. Pensou que a febre da aplicação da nova lei de proteção de dados estava a ser levada ao ridículo, mas como era nova na instituição e o seu poder estava reduzido a zero, tirou as fotos, os desenhos e o poster do painel de cortiça, ficando novamente a superfície castanha à vista, lindíssima... Mas a moldura, a moldura que o seu mais novo tinha feito na infantil, na classe dos patinhos de bibe amarelo, com a foto especial tirada no dia da mãe, em que o abraço dos filhos a confortava cada vez que a observava, permaneceu em cima da secretária. Era o seu grito de rebeldia, a sua ligação à terra, a linha que a manteria à superfície, não a deixando submergir nas profundezas da lama em que a instituição afundava os seus funcionários. Colocou os phones nos ouvidos e ficou a ouvir o hit do momento: Shallow!

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