5 pães de água




Os 4 empregados da pastelaria faziam apostas e disputavam entre eles o direito a atender aquela cliente. Vinha todos os dias da semana de trabalho, à mesma hora, e pedia sempre a mesma coisa. Não se tratava de uma cliente jovem e deslumbrante, nem de uma cliente cujo corpo e roupas fizessem parar o trânsito. Quando ela entrava na pastelaria, à procura de uma mesa disponível, o barulho das conversas e do manuseamento de loiça continuava no mesmo tom e ninguém desviava o olhar do seu galão e pastel para a observar. Apesar de ser discreta, a educação e o sorriso com que brindava o empregado que a atendia eram um prazer acrescido ao seu trabalho diário na pastelaria do centro da cidade.

Apresentava ao empregado o saquito de pano, feito por um dos filhos no ATL na escola primária, e pedia: 5 pães de água clarinhos para levar e mais 1 pão de água com manteiga para comer agora. Era sempre o mesmo, dia após dia. Tirava da mochila um livro e começava a ler.

E era precisamente no livro que residia a curiosidade dos empregados da pastelaria. Enquanto a atendiam e serviam, espreitavam o livro, procurando saber o título e se a leitura ia avançada. Todos queriam ser os primeiros a conhecer e a divulgar aos colegas um novo livro. Era como se fosse um jogo. Já muitos livros tinham sido lidos naquela pastelaria por aquela cliente, uns mais volumosos, outros fininhos, alguns de bolso, outros de capa dura, de autores estrangeiros, mas sobretudo muitos de autores portugueses e isso tinha atraído a atenção e curiosidade dos empregados. Até já conheciam alguns escritores recorrentes. Volta e meia lá aparecia mais um livro do autor X, ou do Y, muitas vezes do autor Z! Que livro estaria agora a ler?! Já teria terminado o anterior e começado a ler um livro novo?!

Esta espécie de jogo, tacitamente assumida e aceite por todos os intervenientes, tinha como consequência que às segundas-feiras, mesmo com a pastelaria completamente cheia de clientes, aquela cliente era atendida em tempo recorde. Independentemente do estado de avanço na leitura detetado na sexta-feira, o fim de semana poderia ter sido muito produtivo e na segunda-feira já estar a ler um novo livro, que queriam descobrir qual era. Por outro lado, nos dias após ser constatado o início da leitura de um novo livro e enquanto o volume das folhas à direita fosse superior ao volume das folhas à esquerda enquanto a cliente o lia, a pressa para a atender já não era notória, apesar de ser sempre atenciosamente e muito bem servida.

Para além da simpatia, do sorriso, da certeza do pedido, do saco de pano para o pão e da incógnita do livro, os 4 empregados da pastelaria gostavam de tentar perceber pelas expressões da cliente o tipo de livro que lia. Enquanto segurava o pão com uma mão, com cuidado para que a manteiga derretida no pão acabado de sair do forno não pingasse, com a outra mão segurava o livro, lia e no seu rosto iam aparecendo expressões reveladoras. Por vezes divertida, quase gargalhava em voz alta, noutras situações esbugalhava os olhos, ou franzia a testa, torcia o nariz e revirava os olhos. Já tinham reparado que naturalmente sorria enquanto lia, sinal que o livro lhe estava a dar prazer, mas também já lhe tinham vislumbrado os olhos brilhantes, com lágrimas...

Terminava de comer o pão e continuava a ler, abstraindo-se dos barulhos e movimentos em sua volta. Era só ela e a história do livro. Chegada a hora de se ir embora fechava o livro e suspirava, voltando o mundo real. Os empregados viam-na sair, levando o saquito de pano com os 5 pães de água e também eles voltavam ao mundo real. No ar ficava o aroma a pão acabado de cozer e a expectativa de um novo livro no dia seguinte.

Um rapazito especial




O rapazito franzino, de olhar bondoso e esperto, caminhava preguiçosamente a caminho de casa, depois de uma manhã a tentar prestar atenção ao mestre que lecionava as aulas na escola primária da vila. A matéria interessava-lhe, mas também lhe interessava o que se passava na rua e tentava vislumbrar através da grande janela da sala de aula, por isso era frequentemente chamado à atenção pelo professor. Além disso ao fim da manhã já era muito difícil permanecer concentrado, a fome apertava e já só conseguia pensar no recado da mãe: depois da escola passa na padaria e traz o pão para tu e os teus irmãos comerem hoje.

Nos pés trazia uns sapatos velhos e apertados, já usados pelo irmão mais velho e que o pai tinha arranjado. Era sortudo por não ter de andar descalço como muitos dos companheiros da sua aldeia. Levava a sacola da escola a tiracolo e na mão o saquito com o pão que a padeira lhe tinha dado. A parte final do percurso de cerca de 2 km entre a escola e casa era a mais difícil, uma subida acentuada. Como a fome apertava e o caminho era longo foi tirando distraidamente umas migalhitas do pão. Sempre dava para enganar o estômago até às couves do almoço. Uma migalha agora, mais uns passos e outra migalha, a curva do caminho e outra migalha, o atalho pelo carreiro a subir e mais umas quantas migalhas, até que finalmente, cansado, mas saciado, chegou a casa.

A mãe e os irmãos mais novos já o esperavam com o caldo de couves e batatas na mesa pronto a ser servido. Contou entusiasmado a leitura que tinha feito na aula, gostava muito de ler, mas omitiu a parte da repreensão do professor. A mãe, paciente, ouviu-o com atenção e amor, sabia o quanto era importante para aquele filho aprender, mas esperava que lhe entregasse o pão e assim calar os estômagos dos pequenitos. Ao entregar à mãe o saco do pão estranhou a sua leveza. Logo que a mãe abriu o saco depararam-se apenas com um pequeno pedaço de pão. Esbugalharam ambos os olhos olhando para aquele resto de pão. Ele assustado e com um grande sentimento de culpa porque se apercebeu que ao longo do caminho tinha comido o pão quase todo, o pão que era também para os irmãos. Ela porque mais uma vez não teria pão para saciar toda a família. Ela também porque olhava para aquele filho franzino que se tinha levantado ainda de noite para ir a pé para a escola, com pouco mais que uma água deslavada no estômago, sentia a sua fome e percebia a inocência do seu ato e a culpa que agora lhe pesava. Não o iria repreender, teria apenas de, mais uma vez, multiplicar as migalhas restantes e dividi-las pelos filhos. Mais um dia em que ela e o marido não comeriam pão, mas naquela mesa não faltaria alegria, não faltariam conversas nem faltaria amor.

À noite, depois de cumpridas todas as suas tarefas, sentou-se ao borralho junto à mãe. Aproveitava o calor e a luz do fogo para ler o livrito que tinha trazido da escola. A divisão, de paredes pretas pintadas pelo fumo, exercia nele um certo fascínio. Gostava de, nas noites frias e escuras de inverno, sentir o calor e a luz do fogo, sentir o cheiro da madeira queimada e da sopa a ser feita na panela de ferro. Gostava de olhar para cima e ver o fumo a escoar-se pelas telhas de barro. Mas gostava sobretudo daqueles momentos a sós com a sua mãe, quando os irmãos mais velhos iam deitar os mais novos e o pai tratava dos seus assuntos na sala ao lado. Sabia que os tais assuntos do pai, quando a vida o permitia, era apenas o prazer de ler um livro em sossego, à luz da lamparina. Partilhava com o pai o gosto pela leitura e sentia nisso um grande orgulho.

A sua vida era simples, mas feliz, o fogo tinha-lhe aquecido o coração e a companhia e perdão da mãe reconfortou-lhe a alma. Sentia que não precisava de muito mais, tinha a possibilidade de estudar e tinha uma casa cheia de gente e de amor. A guerra na Europa já tinha terminado por isso tinha confiança que tudo iria também melhorar em termos económicos.

Nessa noite, já deitado, disse as suas orações em silêncio, porque Deus não precisava de som para o ouvir. Profundamente arrependido, pediu perdão por ter comido o pão que era para todos. Prometeu que se recordaria para sempre desse incidente e que tal não voltaria a acontecer. Pediu pela mãe, pelo pai e pelos irmãos, que tivessem saúde e prosperassem. Pediu também a Deus que lhe permitisse nunca mais ter fome…

Rio Dos Mouros




O rapaz saltitava sobre as pedras redondas de rocha calcária cobertas de musgo verde, subindo o leito do rio.  Naquela estação, a mais quente do ano, o rio corria subterrâneo, por isso Marco gostava de explorar a profunda garganta do rio, subindo e descendo pelo seu leito, saltando de pedra em pedra. Alguns raios de sol conseguiam atravessar a densa vegetação que, atravessando as margens do estreito canhão, formavam um túnel sobre o rio, iluminando o caminho. Era uma paisagem única, sombria, mas muito bonita que estimulava a sua imaginação e apetência para a aventura. Por vezes, saía do leito do rio e subia a escarpa agarrando-se a troncos e a rochas salientes.

Tinha sido numa destas incursões pela encosta que havia descoberto as estranhas grutas. Na altura guardou segredo sobre o achado. Primeiro porque a descoberta o tinha deixado nervoso e receoso ao ponto de não conseguir dormir, com medo de ter descoberto o esconderijo de algum ser monstruoso que certamente o perseguiria e mataria para que não revelasse o seu segredo. Depois, verificando que não havia indícios de estar efetivamente em perigo, porque achava que ninguém o levaria a sério nem acreditaria na sua descoberta.

Finalmente, após algumas semanas, ganhou coragem e voltou às grutas. Entrou a medo. Deu apenas dois passos para o seu interior, os olhos tinham que se adaptar à escuridão para conseguir distinguir as formas e perceber se seria seguro prosseguir. Numa mão levava um pau, um tronco seco que tinha apanhado no caminho, e na outra uma pedra. Sabia que em situação de perigo e confronto com algum ser monstruoso essas armas não serviram de muito, mas davam-lhe a ilusão que, na melhor das hipóteses, poderiam servir para intimidar o opositor e, em caso de arremesso, atrasar a perseguição e adiantar-se na fuga. Por essa mesma razão, uns dias antes tinha feito uma incursão ao local e analisado a melhor estratégia de aproximação e de fuga, estudando caminhos e possíveis esconderijos. Quando os olhos conseguiram ver todo o interior da gruta permitindo-o confirmar que se encontrava só, respirou fundo. As pernas e braços ainda tremiam, mas ganhou coragem e explorou o interior, verificando a existência de várias cavidades. Espalhados no chão encontrou objetos estranhos, adagas, punhais e alguns ossos. Assustou-se com a descoberta, considerando-a mais uma prova que a gruta seria habitada por um ser terrível. Pegou num punhal e num osso, convencido que seria humano, e fugiu dali rapidamente. Correu, descendo o desfiladeiro até ao rio, tropeçando em troncos e pedras. Quando exausto parou junto à margem, contemplou os tesouros que tinha extraído à gruta. O punhal era muito velho e rudimentar e consistia apenas na lâmina com um pequeno cabo também de ferro. O osso era mais pequeno do que lhe tinha parecido inicialmente, talvez não fosse humano, afinal. Apesar de não ter conhecimentos de anatomia, reconhecia o formato e dimensão do osso; costumava fazer figurinhas de brincar esculpindo os ossos que sobravam das refeições mais faustosas a que tinham direito quando o seu pai ia à caça.

Recomposto do susto e do cansaço, mas ainda excitado com a descoberta, Marco saltitou de pedra em pedra subindo o leito do rio até ao local onde o caminho de acesso à povoação cruza o rio, numa ponte de pedra. Trepou a margem irregular e chegou ao caminho que sobe íngreme até à povoação. Sem vegetação a protegê-lo dos raios escaldantes do sol na subida, chegou a casa ofegante. Chamou pelo pai, ansioso por lhe mostrar a sua descoberta. Apesar de ainda ser um rapazito, tinha a esperança que a prova da sua coragem e a apresentação do achado lhe abrisse a porta do mundo dos homens adultos. Ansiava também que a jovem Valéria reparasse nele. Com 15 anos e grandes olhos verdes, Valéria tinha já muitos pretendentes, mas Marco tinha a certeza que, apesar da diferença de idades, ela não iria ficar indiferente à sua bravura. Não tendo obtido resposta, avançou pelos aposentos até ao quarto onde esperava encontrar o pai a descansar.

O que encontrou assim que entrou no quarto foi algo que o marcou para toda a vida, algo que o obrigou a agir rapidamente, passando nesse mesmo instante de menino a homem. Aconteceu tudo tão repentinamente que a sequência dos acontecimentos ainda pairava como uma neblina difusa na sua mente quando, uns dias mais tarde, foi orgulhosamente recebido pelo pai na sala onde o esperavam os mais ilustres da cidade. O reconhecimento público do seu ato heróico foi coroado com o olhar, sorriso e insinuação de Valéria.

Segundo a narrativa do próprio pai, perante a assembleia de ilustres, o gigante que saqueava a casa, ao ser interpelado, não hesitara em usar a vantagem física para anular qualquer hipótese de reconhecimento e condenação futura, rodeando e apertando o seu pescoço com ambas as mãos. Já quase sufocava quando Marco entrou na divisão. De acordo com o relato, o grito que Marco deu apenas provocou um riso enlouquecido no gigante, o que aumentou a sua aflição, mas surpreendentemente, o riso transformou-se num grito lancinante de dor quando o punhal foi cravado uma e outra vez na carne do gigante, que acabou por libertar o pai, salvando-o. Graças à bravura do filho que, enlouquecido ao ver o gigante estrangulando o pai, correu para eles com o punhal na mão e, com uma força que desconhecia possuir, apunhalou o gigante vezes sem conta até este cair inerte no chão banhado de sangue, salvou-se e salvou as moedas de prata que com tanto sacrifício tinha conseguido juntar ao longo da vida.

A origem do punhal tornou-se irrelevante perante o facto de ter salvado a vida do pai e matado o gigante, aliás, ninguém se lembrou de perguntar porque tinha Marco um punhal na mão quando entrou em casa e onde o tinha encontrado. Essa descoberta ficaria para outra altura, neste momento queria aproveitar ao máximo a importância recém-adquirida e o seu novo estatuto por ter travado o gigante e por salvar o seu pai da morte certa.

De mãos dadas, Marco e Valéria, saltitam de pedra em pedra, subindo o leito do rio…

Chá, café...ou um copo de vinho tinto

  Ouvi o silvo da chaleira ao lume, a água fervia, o chá ficaria pronto num instante… Mas não tenho por costume fazer chá, nem oferecer ch...