O rapaz saltitava sobre as pedras
redondas de rocha calcária cobertas de musgo verde, subindo o leito do
rio. Naquela estação, a mais quente do
ano, o rio corria subterrâneo, por isso Marco gostava de explorar a profunda
garganta do rio, subindo e descendo pelo seu leito, saltando de pedra em pedra.
Alguns raios de sol conseguiam atravessar a densa vegetação que, atravessando
as margens do estreito canhão, formavam um túnel sobre o rio, iluminando o
caminho. Era uma paisagem única, sombria, mas muito bonita que estimulava a sua
imaginação e apetência para a aventura. Por vezes, saía do leito do rio e subia
a escarpa agarrando-se a troncos e a rochas salientes.
Tinha sido numa destas incursões
pela encosta que havia descoberto as estranhas grutas. Na altura guardou
segredo sobre o achado. Primeiro porque a descoberta o tinha deixado nervoso e
receoso ao ponto de não conseguir dormir, com medo de ter descoberto o
esconderijo de algum ser monstruoso que certamente o perseguiria e mataria para
que não revelasse o seu segredo. Depois, verificando que não havia indícios de
estar efetivamente em perigo, porque achava que ninguém o levaria a sério nem
acreditaria na sua descoberta.
Finalmente, após algumas semanas,
ganhou coragem e voltou às grutas. Entrou a medo. Deu apenas dois passos para o
seu interior, os olhos tinham que se adaptar à escuridão para conseguir
distinguir as formas e perceber se seria seguro prosseguir. Numa mão levava um
pau, um tronco seco que tinha apanhado no caminho, e na outra uma pedra. Sabia
que em situação de perigo e confronto com algum ser monstruoso essas armas não
serviram de muito, mas davam-lhe a ilusão que, na melhor das hipóteses,
poderiam servir para intimidar o opositor e, em caso de arremesso, atrasar a
perseguição e adiantar-se na fuga. Por essa mesma razão, uns dias antes tinha
feito uma incursão ao local e analisado a melhor estratégia de aproximação e de
fuga, estudando caminhos e possíveis esconderijos. Quando os olhos conseguiram
ver todo o interior da gruta permitindo-o confirmar que se encontrava só,
respirou fundo. As pernas e braços ainda tremiam, mas ganhou coragem e explorou
o interior, verificando a existência de várias cavidades. Espalhados no chão
encontrou objetos estranhos, adagas, punhais e alguns ossos. Assustou-se com a
descoberta, considerando-a mais uma prova que a gruta seria habitada por um ser
terrível. Pegou num punhal e num osso, convencido que seria humano, e fugiu dali
rapidamente. Correu, descendo o desfiladeiro até ao rio, tropeçando em troncos
e pedras. Quando exausto parou junto à margem, contemplou os tesouros que tinha
extraído à gruta. O punhal era muito velho e rudimentar e consistia apenas na
lâmina com um pequeno cabo também de ferro. O osso era mais pequeno do que lhe
tinha parecido inicialmente, talvez não fosse humano, afinal. Apesar de não ter
conhecimentos de anatomia, reconhecia o formato e dimensão do osso; costumava
fazer figurinhas de brincar esculpindo os ossos que sobravam das refeições mais
faustosas a que tinham direito quando o seu pai ia à caça.
Recomposto do susto e do cansaço,
mas ainda excitado com a descoberta, Marco saltitou de pedra em pedra subindo o
leito do rio até ao local onde o caminho de acesso à povoação cruza o rio, numa
ponte de pedra. Trepou a margem irregular e chegou ao caminho que sobe íngreme
até à povoação. Sem vegetação a protegê-lo dos raios escaldantes do sol na
subida, chegou a casa ofegante. Chamou pelo pai, ansioso por lhe mostrar a sua
descoberta. Apesar de ainda ser um rapazito, tinha a esperança que a prova da
sua coragem e a apresentação do achado lhe abrisse a porta do mundo dos homens
adultos. Ansiava também que a jovem Valéria reparasse nele. Com 15 anos e
grandes olhos verdes, Valéria tinha já muitos pretendentes, mas Marco tinha a
certeza que, apesar da diferença de idades, ela não iria ficar indiferente à
sua bravura. Não tendo obtido resposta, avançou pelos aposentos até ao quarto
onde esperava encontrar o pai a descansar.
O que encontrou assim que entrou
no quarto foi algo que o marcou para toda a vida, algo que o obrigou a agir
rapidamente, passando nesse mesmo instante de menino a homem. Aconteceu tudo
tão repentinamente que a sequência dos acontecimentos ainda pairava como uma
neblina difusa na sua mente quando, uns dias mais tarde, foi orgulhosamente
recebido pelo pai na sala onde o esperavam os mais ilustres da cidade. O
reconhecimento público do seu ato heróico foi coroado com o olhar, sorriso e
insinuação de Valéria.
Segundo a narrativa do próprio
pai, perante a assembleia de ilustres, o gigante que saqueava a casa, ao ser
interpelado, não hesitara em usar a vantagem física para anular qualquer
hipótese de reconhecimento e condenação futura, rodeando e apertando o seu pescoço
com ambas as mãos. Já quase sufocava quando Marco entrou na divisão. De acordo
com o relato, o grito que Marco deu apenas provocou um riso enlouquecido no
gigante, o que aumentou a sua aflição, mas surpreendentemente, o riso transformou-se
num grito lancinante de dor quando o punhal foi cravado uma e outra vez na
carne do gigante, que acabou por libertar o pai, salvando-o. Graças à bravura
do filho que, enlouquecido ao ver o gigante estrangulando o pai, correu para
eles com o punhal na mão e, com uma força que desconhecia possuir, apunhalou o
gigante vezes sem conta até este cair inerte no chão banhado de sangue, salvou-se
e salvou as moedas de prata que com tanto sacrifício tinha conseguido juntar ao
longo da vida.
A origem do punhal tornou-se irrelevante
perante o facto de ter salvado a vida do pai e matado o gigante, aliás, ninguém
se lembrou de perguntar porque tinha Marco um punhal na mão quando entrou em
casa e onde o tinha encontrado. Essa descoberta ficaria para outra altura,
neste momento queria aproveitar ao máximo a importância recém-adquirida e o seu
novo estatuto por ter travado o gigante e por salvar o seu pai da morte certa.
De mãos dadas, Marco e Valéria, saltitam de
pedra em pedra, subindo o leito do rio…
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