Doctor, doctor!

 


Isto aconteceu há muitos anos, tinha 21, quase 22 anos. Deitada na marquesa aguardava a cirurgia, sozinha na sala onde a mesma se iria realizar. Não era propriamente um bloco operatório como eu tinha imaginado, muito longe dos blocos operatórios dos filmes, parecia uma arrumação, uma sala cheia de tralha, com uma cortina à volta da marquesa que, fechada, me iria isolar do restante espaço. Os elétrodos já ligados registavam a minha frequência cardíaca e no silêncio da sala, o ritmo lento da minha bradicardia era o único som que se ouvia. Bip...................bip…………………..bip..…………..bip…..………… Estive assim bastante tempo, deitada, sozinha, embalada pela lentidão no meu ritmo cardíaco que, se não fosse o nervosismo, me teria feito adormecer.

A determinada altura entra um médico. Reconheci-o, já tinha estado com ele numa consulta. Novito, morenão, lindo de morrer… bem, de morrer não, de ressuscitar os mortos! Junto a um lavatório despiu-se da cintura para cima e, de costas para mim, pude apreciar o seu tronco moreno musculado enquanto lavava e desinfetava as mãos e braços. Apesar do bloqueio a pulsação disparou. O ritmo lento deu lugar a um acelerado bip, bip, bip, bip que ecoou por toda a sala. Bolas! Não sei o que o médico pensou, se se estava a divertir com a situação, se a fazer uma análise profissional, ou simplesmente abstraído no seu ritual de desinfeção, mas na altura achei que demorou muito tempo nesse processo, de costas, em tronco nu, a provocar-me. Muito provavelmente a única razão para a demora foi apenas o seu interesse profissional em perceber como é que aquele coração, o meu, apesar do bloqueio completo, respondia bem aos estímulos. Eu respirei fundo, contei até 10, contei de novo, tentei abstrair-me, relaxar, mas a pulsação não abrandou. Na altura ainda não era praticante de yoga e desconhecia a arte de controlar a respiração e deixar o corpo fluir. A máquina continuava a emitir uns bip - bips acelerados e não havia nada que eu fizesse que conseguisse diminuir o ritmo cardíaco, sentia-me exposta, transparente.

Resignada, devo ter fechado os olhos e aguardado que aquilo acabasse, ou melhor, que começasse. A espera para a cirurgia já me estava a deixar enervada e hoje desconfio que os bip-bips acelerados eram mais consequência da ansiedade e nervos que da presença do médico sexy seminu.

Enfim chegou o resto da equipa e começou a cirurgia. Apenas com anestesia local pude ouvir e sentir tudo com exceção da incisão e sutura. Começaram por sintonizar o rádio numa estação que transmitia música clássica e lembro-me que ouvi durante quase toda a operação o Bolero de Ravel. Sendo a minha primeira cirurgia achei alguma piada ao facto de poder ouvir as conversas que os médicos têm entre si enquanto operam. Entre instruções e comentários técnicos referentes à operação, falam de trivialidades, de música, dos filhos…deixei de achar piada quando um deles contou que tinha sido chamado para tirar um pace-maker do corpo de um morto. Que raio de conversa para se ter em frente a uma paciente, pensei. Deixei de prestar atenção às conversas e, concentrando a audição no Bolero, foquei os restantes sentidos no meu corpo. Estando a ser operada abaixo da clavícula direita, tinham espalhado os instrumentos necessários por cima do meu corpo. Conforme iam precisando de um determinado instrumento, cuja forma e função ignoro, as suas mãos pegavam nele, fazendo uma espécie de cócegas na parte do corpo sobre o qual o instrumento estava… sorte teria tido se todas as sensações fossem de cócegas. As dores insuportáveis e o sentimento de impotência ao sentir o domínio da máquina sobre o corpo fizeram-me pensar quão frágil pode ser a nossa existência e, mesmo com toda a força, coragem e sensação de imortalidade próprios da juventude, não deixei de experimentar um sentimento que poderá ter mudado a minha forma de estar na vida.

O que também mudou nos meses seguintes foi o entusiasmo com que passei a cantarolar as músicas Bad case Of Loving You (Doctor, Doctor) de Robert Palmer e Doctor! Doctor! Dos Thompson Twins…coisas de miúda a quem foi dada uma segunda oportunidade de apreciar a vida.

A Torre!


 


Esta noite tive um sonho. Sonhei com uma torre enorme e monstruosa de 7 andares. Eu sei que a um edifício de 7 andares, por norma, não se chama torre, mas no mundo distorcido onde me encontrava no sonho tudo era desproporcionado e fora de escala. No sonho, o edifício de 7 andares, doravante apenas denominado A Torre, subia para além das nuvens e ninguém conseguia ver o seu topo. Perante o desconhecido e a suposição que A Torre elevava para uma dimensão alienígena quem quer que a habitasse, os habitantes da cidade temiam-na e odiavam-na, sentiam-se como Liliputianos perante Guliver. A Torre até era bonita, elegante e apelativa fazendo com que alguns corajosos e mais dados a aventuras a desejassem conhecer melhor e até habitar, mas por vezes transfigurava-se e a sua sombra sobre a cidade obscurecia o espírito dos Liliputezinhos que, aterrorizados, juravam que a tinham visto engolir jardins, casas, carros e até pessoas.

Não sei bem por que razão, mas fui eu a eleita e chamada a tentar resolver o problema da cidade, o problema da Torre. Com muito boa vontade e cheia de esperança muni-me das armas e utensílios que achei apropriados a combater o flagelo da Torre.  Quando me aproximei a primeira vez da Torre, achei-a inofensiva, apesar da altura descomunal de 7 pisos – relembro que naquele mundo tudo era distorcido e desproporcionado. Analisei cuidadosamente todos os aspetos físicos e psíquicos inerentes à existência da Torre uma vez que se desconhecia quem e como a teria construído. Sobre este tema também recaíam muitas polémicas e contradições. Havia quem dissesse que A Torre tinha sido construída por elementos ocultos da sociedade que, sob a falsa intenção de criar habitações, pretendiam destruir a cidade remetendo-a à sombra eterna. Havia quem dissesse que, como ser inteligente e auto mutante, a própria Torre se tinha construído no intuito de ser o elemento dominante e dominador da até então pacata cidade. Havia ainda quem ousasse dizer que não via qualquer mal na sua existência, sentindo-se perfeitamente capaz de coexistir com tão transcendente elemento arquitetónico.

 Após uma primeira análise não encontrei nada de estranho na Torre, tirando o facto de ter 7 pisos e alcançar o céu e isso sim, era de facto estranho. A questão não parava de me inquietar o espírito e entrei num delírio tortuoso em que a imagem da torre disforme e sem fim me tinha capturado e, como numa espiral, eu percorria-a vezes sem conta, nunca atingindo o seu final nem conseguindo voltar ao início. Passei dias e dias, no sonho, neste delírio, presa na Torre, sem conseguir, no entanto, descobrir qual a razão do seu problema e como o solucionar. Perante a minha ineficácia o povo voltou-se também contra mim, alegando que era cúmplice da Torre, eventualmente até a sua criadora e que também eu queria o fim da cidade. Com o início de alguns tumultos, a cidade aparecia, no sonho, cada vez mais distorcida e desproporcionada. As plantas eram minúsculas, as pessoas também, os automóveis transfiguraram-se e apareciam gigantes, obstruindo as estradas, ocupando os passeios, logradouros, jardins, criando o caos. Perante a confusão que se gerava na cidade, a Torre ria, pois que nos sonhos tudo é possível, e ria desalmadamente fazendo tremer a terra que se rasgava abrindo fissuras enormes das quais nasciam mais Torres. Torres e Torres e Torres enormes, disformes e desproporcionadas…Ahhhhh!

Acordei, felizmente, mas a sensação de estar a ser perseguida por uma torre não me abandonou.

Maresia


 

Hoje apetece-me escrever. Tenho uma vontade enorme de falar do cheiro a maresia, a bolos e a pão acabado de cozer. Cheiro a manhãs frescas de verão, quando a neblina e o mar se fundem, deixando a vila mergulhada no silencio húmido de um lento acordar tardio.


Manhãs em que, sem pressa de ir para a praia, percorro descontraidamente as ruas da vila, ausente de veraneantes. A neblina instalada cria uma dimensão diferentes aos dias, a dimensão do tempo parado, possibilitando-me caminhar sozinha, isolada, absorvendo os odores intensificados a mar, a bolos e a pão acabado de cozer. Permito-me passear descontraidamente, sem horário. O branco e azul das construções é absorvido pelo filtro cinza claro da neblina que preenche os espaços, tornando suaves e indefinidas as linhas dos seus contornos. Caminho como num sonho, num mundo semirreal, suave e indefinido na sua dimensão física, mas intenso em tranquilidade e em perceções olfativas.

O aroma a bolos e a pão acabado de cozer é irresistível. Saboreando o momento de tranquilidade entro numa padaria. O aroma intensifica-se, há pão quente, o que me deixa de água na boca. Compro pão para o dia, o famoso pão da zona, denso e saboroso, e broa para acompanhar as sardinhas ao almoço. Com o saco de pão na mão a exalar um cheirinho delicioso percorro as ruas, que continuam ainda desertas, em direção à praça onde há uma pastelaria que recordo dos tempos de criança. Já nessa altura um dos melhores momentos do dia era aquele em que, acompanhando o café que os nossos pais bebiam, eu e os meus irmãos comíamos um bolo na pastelaria da praça. Com o aroma a bolos acabados de fazer seduzindo os transeuntes, não resisto e entro na pastelaria. O sol continua encoberto e de momento a melhor forma de preencher a manhã é deixar-me levar pelo prazer de apreciar um bom café e um bolo delicioso na pastelaria deserta.

Estas memórias tão doces, esta vontade de reviver estes momentos, surgem ao caminhar pelas ruas desertas numa manhã qualquer de uma primavera atípica. Não cheira a bolos nem a pão acabado de cozer, as pastelarias estão fechadas. As ruas estão desertas, mas o sol brilha e a sua luz inunda a cidade, intensificando-lhe as cores. Tento repetir a sensação de bem-estar por caminhar numa rua deserta, tento apreciar a solidão e a tranquilidade da ausência de transeuntes de passos apressados, de conversas cruzadas e de trânsito à hora de ponta. Tento, mas não consigo, a nostalgia apodera-se de mim, a lembrança de momentos agradáveis do passado contrasta de forma absurda com a surreal situação do presente. As ruas completamente desertas já não são agradáveis, são deprimentes e assustadoras, a solidão é triste e angustiante e falta o cheiro a bolos e a pão acabados de cozer. Mas o sol brilha e o seu brilho é intenso, purificador e ao sentir o seu calor acariciar-me a pele sinto a esperança de num futuro próximo voltar a sentir o cheiro a maresia, a bolos e a pão acabado de cozer.

Chá, café...ou um copo de vinho tinto

  Ouvi o silvo da chaleira ao lume, a água fervia, o chá ficaria pronto num instante… Mas não tenho por costume fazer chá, nem oferecer ch...