Chá, café...ou um copo de vinho tinto

 




Ouvi o silvo da chaleira ao lume, a água fervia, o chá ficaria pronto num instante…

Mas não tenho por costume fazer chá, nem oferecer chá às visitas, apesar de até acontecer ocasionalmente, o mais certo seria: Ploc! Com um movimento firme a rolha de cortiça é arrancada da garrafa libertando-se o agradável aroma do vinho tinto.

Contrariamente à minha vivência pessoal, reparei que nos livros que tenho lido é muito mais frequente as personagens oferecerem chá aos seus convidados. Talvez por ser mais sugestivamente sonoro o processo de preparar um chá. Além disso a palavra chaleira enche a boca, enche o espaço e as nossas memórias de infância. A recordação dos lanches em casa dos avós e das tardes de domingo em casa dos pais quando recebíamos visitas. Sim, há algo mágico e reconfortante em oferecer e preparar um chá, uma infusão quente e aromática. No entanto, estranhei quando, em vários livros, era essa a bebida que as personagens ofereciam às suas visitas, personagens jovens, dinâmicas, atuais. Não era um cafezinho, nem vinho, nem sequer um licor, e licor é uma palavra com uma sonoridade muito agradável…licor de framboesa, se tivesse, ofereceria sem pestanejar um licor de framboesa a quem me visitasse. Mas era chá que ofereciam. Punham a chaleira ao lume e continuava a narrativa enquanto a água atingia o ponto de ebulição. Após o silvo da chaleira que enchia todo o espaço e despertava o leitor e as personagens de novo para a ação, anunciando que a água estaria pronta, vertiam o líquido para uma chávena. Normalmente, depois de servido as personagens nem sequer tocam no chá, ficam ali, sentindo o calor nas mãos, com esperança que o fumegar liberte as conversas necessárias e não apenas o aroma da bebida. Talvez seja uma questão de compasso na narrativa: a oferta, o preparar, o esperar, o calor, o tempo, os sons e os cheiros, mas principalmente as palavras – chá, chaleira, chávena. Palavras intensas, com uma grande carga afetiva e histórica.

Por outro lado, nos écrans é muito frequente, talvez mais que na vida real, ver pessoas com um copo de vinho na mão. À tarde, ao fim do dia, até mesmo de manhã, sozinhas ou acompanhadas. O copo de vinho é elegante, é colorido, é apelativo e sensual e transmite segurança, tranquilidade, poder, confiança. Uma personagem sozinha, ele ou ela, com um copo de vinho na mão, é sempre alguém com classe, com o domínio da situação, por muito miserável e solitária que a sua “vida” seja. O mesmo não se pode dizer se o vinho for bebido diretamente pela garrafa, então é porque está a bater no fundo. Se eu abrisse uma garrafa de vinho tinto com a mesma frequência que se vê nos filmes alguém a beber vinho fora das refeições, iria triplicar o seu consumo. Não é que não aconteça, acontece com muito mais frequência do que as vezes que bebo chá.

Uma ótima opção será oferecer um café, um robusto e aromático café numa elegante chávena de vidro. Também tem o seu processo de preparação sonoramente apelativo, tem cor, tem um aroma forte e personalidade.



Foto de passagem do livro Águas passadas de João Tordo 

Doctor, doctor!

 


Isto aconteceu há muitos anos, tinha 21, quase 22 anos. Deitada na marquesa aguardava a cirurgia, sozinha na sala onde a mesma se iria realizar. Não era propriamente um bloco operatório como eu tinha imaginado, muito longe dos blocos operatórios dos filmes, parecia uma arrumação, uma sala cheia de tralha, com uma cortina à volta da marquesa que, fechada, me iria isolar do restante espaço. Os elétrodos já ligados registavam a minha frequência cardíaca e no silêncio da sala, o ritmo lento da minha bradicardia era o único som que se ouvia. Bip...................bip…………………..bip..…………..bip…..………… Estive assim bastante tempo, deitada, sozinha, embalada pela lentidão no meu ritmo cardíaco que, se não fosse o nervosismo, me teria feito adormecer.

A determinada altura entra um médico. Reconheci-o, já tinha estado com ele numa consulta. Novito, morenão, lindo de morrer… bem, de morrer não, de ressuscitar os mortos! Junto a um lavatório despiu-se da cintura para cima e, de costas para mim, pude apreciar o seu tronco moreno musculado enquanto lavava e desinfetava as mãos e braços. Apesar do bloqueio a pulsação disparou. O ritmo lento deu lugar a um acelerado bip, bip, bip, bip que ecoou por toda a sala. Bolas! Não sei o que o médico pensou, se se estava a divertir com a situação, se a fazer uma análise profissional, ou simplesmente abstraído no seu ritual de desinfeção, mas na altura achei que demorou muito tempo nesse processo, de costas, em tronco nu, a provocar-me. Muito provavelmente a única razão para a demora foi apenas o seu interesse profissional em perceber como é que aquele coração, o meu, apesar do bloqueio completo, respondia bem aos estímulos. Eu respirei fundo, contei até 10, contei de novo, tentei abstrair-me, relaxar, mas a pulsação não abrandou. Na altura ainda não era praticante de yoga e desconhecia a arte de controlar a respiração e deixar o corpo fluir. A máquina continuava a emitir uns bip - bips acelerados e não havia nada que eu fizesse que conseguisse diminuir o ritmo cardíaco, sentia-me exposta, transparente.

Resignada, devo ter fechado os olhos e aguardado que aquilo acabasse, ou melhor, que começasse. A espera para a cirurgia já me estava a deixar enervada e hoje desconfio que os bip-bips acelerados eram mais consequência da ansiedade e nervos que da presença do médico sexy seminu.

Enfim chegou o resto da equipa e começou a cirurgia. Apenas com anestesia local pude ouvir e sentir tudo com exceção da incisão e sutura. Começaram por sintonizar o rádio numa estação que transmitia música clássica e lembro-me que ouvi durante quase toda a operação o Bolero de Ravel. Sendo a minha primeira cirurgia achei alguma piada ao facto de poder ouvir as conversas que os médicos têm entre si enquanto operam. Entre instruções e comentários técnicos referentes à operação, falam de trivialidades, de música, dos filhos…deixei de achar piada quando um deles contou que tinha sido chamado para tirar um pace-maker do corpo de um morto. Que raio de conversa para se ter em frente a uma paciente, pensei. Deixei de prestar atenção às conversas e, concentrando a audição no Bolero, foquei os restantes sentidos no meu corpo. Estando a ser operada abaixo da clavícula direita, tinham espalhado os instrumentos necessários por cima do meu corpo. Conforme iam precisando de um determinado instrumento, cuja forma e função ignoro, as suas mãos pegavam nele, fazendo uma espécie de cócegas na parte do corpo sobre o qual o instrumento estava… sorte teria tido se todas as sensações fossem de cócegas. As dores insuportáveis e o sentimento de impotência ao sentir o domínio da máquina sobre o corpo fizeram-me pensar quão frágil pode ser a nossa existência e, mesmo com toda a força, coragem e sensação de imortalidade próprios da juventude, não deixei de experimentar um sentimento que poderá ter mudado a minha forma de estar na vida.

O que também mudou nos meses seguintes foi o entusiasmo com que passei a cantarolar as músicas Bad case Of Loving You (Doctor, Doctor) de Robert Palmer e Doctor! Doctor! Dos Thompson Twins…coisas de miúda a quem foi dada uma segunda oportunidade de apreciar a vida.

A Torre!


 


Esta noite tive um sonho. Sonhei com uma torre enorme e monstruosa de 7 andares. Eu sei que a um edifício de 7 andares, por norma, não se chama torre, mas no mundo distorcido onde me encontrava no sonho tudo era desproporcionado e fora de escala. No sonho, o edifício de 7 andares, doravante apenas denominado A Torre, subia para além das nuvens e ninguém conseguia ver o seu topo. Perante o desconhecido e a suposição que A Torre elevava para uma dimensão alienígena quem quer que a habitasse, os habitantes da cidade temiam-na e odiavam-na, sentiam-se como Liliputianos perante Guliver. A Torre até era bonita, elegante e apelativa fazendo com que alguns corajosos e mais dados a aventuras a desejassem conhecer melhor e até habitar, mas por vezes transfigurava-se e a sua sombra sobre a cidade obscurecia o espírito dos Liliputezinhos que, aterrorizados, juravam que a tinham visto engolir jardins, casas, carros e até pessoas.

Não sei bem por que razão, mas fui eu a eleita e chamada a tentar resolver o problema da cidade, o problema da Torre. Com muito boa vontade e cheia de esperança muni-me das armas e utensílios que achei apropriados a combater o flagelo da Torre.  Quando me aproximei a primeira vez da Torre, achei-a inofensiva, apesar da altura descomunal de 7 pisos – relembro que naquele mundo tudo era distorcido e desproporcionado. Analisei cuidadosamente todos os aspetos físicos e psíquicos inerentes à existência da Torre uma vez que se desconhecia quem e como a teria construído. Sobre este tema também recaíam muitas polémicas e contradições. Havia quem dissesse que A Torre tinha sido construída por elementos ocultos da sociedade que, sob a falsa intenção de criar habitações, pretendiam destruir a cidade remetendo-a à sombra eterna. Havia quem dissesse que, como ser inteligente e auto mutante, a própria Torre se tinha construído no intuito de ser o elemento dominante e dominador da até então pacata cidade. Havia ainda quem ousasse dizer que não via qualquer mal na sua existência, sentindo-se perfeitamente capaz de coexistir com tão transcendente elemento arquitetónico.

 Após uma primeira análise não encontrei nada de estranho na Torre, tirando o facto de ter 7 pisos e alcançar o céu e isso sim, era de facto estranho. A questão não parava de me inquietar o espírito e entrei num delírio tortuoso em que a imagem da torre disforme e sem fim me tinha capturado e, como numa espiral, eu percorria-a vezes sem conta, nunca atingindo o seu final nem conseguindo voltar ao início. Passei dias e dias, no sonho, neste delírio, presa na Torre, sem conseguir, no entanto, descobrir qual a razão do seu problema e como o solucionar. Perante a minha ineficácia o povo voltou-se também contra mim, alegando que era cúmplice da Torre, eventualmente até a sua criadora e que também eu queria o fim da cidade. Com o início de alguns tumultos, a cidade aparecia, no sonho, cada vez mais distorcida e desproporcionada. As plantas eram minúsculas, as pessoas também, os automóveis transfiguraram-se e apareciam gigantes, obstruindo as estradas, ocupando os passeios, logradouros, jardins, criando o caos. Perante a confusão que se gerava na cidade, a Torre ria, pois que nos sonhos tudo é possível, e ria desalmadamente fazendo tremer a terra que se rasgava abrindo fissuras enormes das quais nasciam mais Torres. Torres e Torres e Torres enormes, disformes e desproporcionadas…Ahhhhh!

Acordei, felizmente, mas a sensação de estar a ser perseguida por uma torre não me abandonou.

Maresia


 

Hoje apetece-me escrever. Tenho uma vontade enorme de falar do cheiro a maresia, a bolos e a pão acabado de cozer. Cheiro a manhãs frescas de verão, quando a neblina e o mar se fundem, deixando a vila mergulhada no silencio húmido de um lento acordar tardio.


Manhãs em que, sem pressa de ir para a praia, percorro descontraidamente as ruas da vila, ausente de veraneantes. A neblina instalada cria uma dimensão diferentes aos dias, a dimensão do tempo parado, possibilitando-me caminhar sozinha, isolada, absorvendo os odores intensificados a mar, a bolos e a pão acabado de cozer. Permito-me passear descontraidamente, sem horário. O branco e azul das construções é absorvido pelo filtro cinza claro da neblina que preenche os espaços, tornando suaves e indefinidas as linhas dos seus contornos. Caminho como num sonho, num mundo semirreal, suave e indefinido na sua dimensão física, mas intenso em tranquilidade e em perceções olfativas.

O aroma a bolos e a pão acabado de cozer é irresistível. Saboreando o momento de tranquilidade entro numa padaria. O aroma intensifica-se, há pão quente, o que me deixa de água na boca. Compro pão para o dia, o famoso pão da zona, denso e saboroso, e broa para acompanhar as sardinhas ao almoço. Com o saco de pão na mão a exalar um cheirinho delicioso percorro as ruas, que continuam ainda desertas, em direção à praça onde há uma pastelaria que recordo dos tempos de criança. Já nessa altura um dos melhores momentos do dia era aquele em que, acompanhando o café que os nossos pais bebiam, eu e os meus irmãos comíamos um bolo na pastelaria da praça. Com o aroma a bolos acabados de fazer seduzindo os transeuntes, não resisto e entro na pastelaria. O sol continua encoberto e de momento a melhor forma de preencher a manhã é deixar-me levar pelo prazer de apreciar um bom café e um bolo delicioso na pastelaria deserta.

Estas memórias tão doces, esta vontade de reviver estes momentos, surgem ao caminhar pelas ruas desertas numa manhã qualquer de uma primavera atípica. Não cheira a bolos nem a pão acabado de cozer, as pastelarias estão fechadas. As ruas estão desertas, mas o sol brilha e a sua luz inunda a cidade, intensificando-lhe as cores. Tento repetir a sensação de bem-estar por caminhar numa rua deserta, tento apreciar a solidão e a tranquilidade da ausência de transeuntes de passos apressados, de conversas cruzadas e de trânsito à hora de ponta. Tento, mas não consigo, a nostalgia apodera-se de mim, a lembrança de momentos agradáveis do passado contrasta de forma absurda com a surreal situação do presente. As ruas completamente desertas já não são agradáveis, são deprimentes e assustadoras, a solidão é triste e angustiante e falta o cheiro a bolos e a pão acabados de cozer. Mas o sol brilha e o seu brilho é intenso, purificador e ao sentir o seu calor acariciar-me a pele sinto a esperança de num futuro próximo voltar a sentir o cheiro a maresia, a bolos e a pão acabado de cozer.

Máquina Infernal

 



Tive ontem a confirmação de algo de que já andava desconfiada há algum tempo. Basta utilizar uma vez para perceber que aquela máquina tem na sua essência algo que não é inocente. Na sua versão mais moderna ela apresenta-se apelativa, cheia de opções de funcionalidade, com luzes e bonitos elementos cromados polidos e garante ser um veículo seguro e eficaz para que o inocente utilizador atinja os seus mais elevados objetivos de realização pessoal. Ela insinua-se no meio das outras máquinas, sempre disponível, com os seus braços abertos para nos receber. Chama por nós prometendo ser a mais fácil, a menos dolorosa, mas a mais eficiente. Admito que foram várias as vezes que não consegui resistir aos seus encantos, respondendo ao seu chamamento de promessas irresistíveis. Fui na sua cantiga de facilidades e garantias…uma desilusão, um autêntico canto de sereia. O que prometia ser indolor converte-se num sofrimento insuportável, o corpo doi, o coração dispara para além do seguro, a vontade de desistir atormenta-me, gera-se uma luta interna e o corpo já não sabe se responda à ordem de parar se responda à ordem de continuar. Nem sei bem quem terá dado esta última ordem dentro de mim, mas as pernas continuam em movimento, o que significa que foi esta a ordem acatada. Talvez tenha sido a esperança de acreditar na sua promessa de eficácia. É claro que se comprovou que os objetivos não foram atingidos…nem poderiam, em “apenas” meia hora!

Quando entro no ginásio e olho para aquelas máquinas percebo logo que são máquinas de tortura camufladas de realizadoras de sonhos. Elas brilham e sorriem para nós como se fossem as nossas melhores amigas, mas num instante convertem-se em demónios sem qualquer compaixão pelo sofrimento alheio. É óbvio que só uma mente perversa poderia idealizar um tal mecanismo. Máquinas que aos poucos, sem que consigamos dar conta, nos vão consumindo as carnes, alimentando-se do nosso corpo, devorando-nos lentamente…muito lentamente para que não nos consigamos aperceber atempadamente da transformação que nos estão a provocar.

Ontem na rádio ouvi que a passadeira, tão popular nos ginásios e nas casas de muitos inocentes, foi inventada como instrumento de tortura e de castigo de prisioneiros que eram obrigados a caminhar nelas durante muitas horas sem poderem parar. Tudo certo, uma máquina de tortura e castigo nas prisões, que continua a ser máquina de tortura e castigo nos ginásios, só mudam as instalações e os elementos que de um lado e de outro a usam. Substituímos os prisoneiros por pessoas livres que voluntariamente se prestam pagar para utilizar o maléfico mecanismo e os guardas prisionais por simpáticos instrutores que nos convidam a usufruir de tão útil mecanismo, sem que precisem de outro meio de persuasão que não seja o seu sorriso.

Claro que a bem da verdade se comprova que a origem e utilização da passadeira não foi tão linear como a expressa no parágrafo anterior, mas é a verdade mais consonante com os sentimentos que nutro por essa máquina infernal.


Fotografia: Mauro Paula - Adhoc Gym

Querido diário...




7 horas, o despertador toca. A sério? Ainda não dormi tudo e o despertador já está a tocar? Há 16 anos, a idade do meu filho mais velho, que tenho uma montanha de horas de sono em débito. Há 16 anos que sofro de sono crónico. Levanto-me e, a cambalear, dirijo-me à cozinha para tomar o comprimido para a Tiróide, o primeiro do dia. Isto já só lá vai com comprimidos. Apesar de me sentir jovem, saudável e poderosa, as obrigatórias bolinhas e disquinhos brancos insistem em lembrar-me a minha idade e condição médica. Desvalorizo, não se pode dar muita confiança às maleitas. Tomo o comprimido e, apesar de já ter celebrado o 50.º, sigo a minha vida como se ainda tivesse 20 anos… com a gigantesca diferença que, com 20 anos, não tinha de me levantar às 7 para ir trabalhar, nem tinha filhos. Trato de mim, oriento os miúdos, faço uma ou outra coisita em casa e pelas 8 saio para o trabalho.

Passo o dia todo a trabalhar, como aliás a grande maioria dos humanos da minha idade. Não tem muito interesse neste momento abordar as situações com que me deparo no trabalho, já foram alvo de inspiração para outros textos. Saio do trabalho e faço umas compras para casa. Chego a casa, faço mais umas coisitas à pressa e tenho logo de sair para levar, ou buscar, os miúdos às atividades. “Despachados” os miúdos e a casa orientada (muitas vezes este orientada significa que alguém lá fica a tratar do que é preciso, sempre sob minha orientação, claro), sigo para o momento em que verdadeiramente me dedico a mim.

Estaciono no piso – 1 e apanho o elevador para o piso 2. São só 3 pisos, poderia muito bem ir pelas escadas, eu vou sempre pelas escadas: no serviço, quando vou a uma consulta no hospital, mesmo tendo de subir 6 pisos… mas quando vou ao ginásio subo ao piso 2 pelo elevador, não me perguntem porquê, mas deve ser psicológico – aquele momentinho de preguiça antes de começar a dar cabo do corpo.

Estou toda dorida, mas não deixo de ir malhar. Ao fim de 2 anos a frequentar o ginásio quase diariamente, era suposto que todos os músculos já estivessem perfeitamente familiarizados com as torturas aplicadas. É o que faz não ter estudado anatomia, deixei que alguns músculos, que nunca imaginei existissem, se mantivessem adormecidos, escondidos e pouco ou nada utilizados. Mas os queridos instrutores que devem ter passado horas e horas a decorar os nomes, a localização e a maneira de acordar, utilizar e massacrar todos os mais de 600 músculos do corpo humano, têm um especial prazer em colocar na prática todos esses fantásticos conhecimentos adquiridos, utilizando-nos como cobaias. É sempre extraordinariamente surpreendente ao fim de cada aula conseguir descobrir mais um músculo desconhecido e tomar consciência da sua existência através da dor. Olá corpo, olá cada um dos seiscentos e tal músculos, bem-vindos à minha vida!

Não sou a única a sentir o mesmo, somos mesmo muitas. Mulheres que passam a vida numa correria para conseguirem um tempinho para ir ao ginásio…correr! Quem diz correr diz outra ação qualquer. Desde que o resultado seja massacrar o corpo, serve. Estamos naquela idade em que nos sentimos capazes de tudo, não há barreiras que não consigamos ultrapassar, afinal estamos no mercado do trabalho há mais de 20 anos e toda a gente sabe que não há nada mais duro que trabalhar, somos mães…bem, na realidade por vezes ser mãe é bem mais duro que trabalhar e ainda conseguimos sobreviver ao convívio diário com adolescentes! Terrível! E como nos sentimos capazes de tudo e mais qualquer coisa que os queridos instrutores resolvam inventar, mesmo doridas vamos ao ginásio e esforçamo-nos sempre mais. Muitas vezes esforçamo-nos até de mais. É um círculo sem fim: dor sobre dor sobre dor… A culpa, claro, é dos instrutores que se esquecem que poderíamos ser mães deles, mães jovens, evidentemente, mas biologicamente possível, e dizem para nos desafiarmos e nós, ingénuas, vamos na cantiga. Os resultados são evidentes: sentimo-nos cada vez mais poderosas, doridas, mas poderosas!

Satisfeita, depois de um banho regenerador, volto para casa, para junto da família. Finalmente o descanso merecido…ou não!

5 pães de água




Os 4 empregados da pastelaria faziam apostas e disputavam entre eles o direito a atender aquela cliente. Vinha todos os dias da semana de trabalho, à mesma hora, e pedia sempre a mesma coisa. Não se tratava de uma cliente jovem e deslumbrante, nem de uma cliente cujo corpo e roupas fizessem parar o trânsito. Quando ela entrava na pastelaria, à procura de uma mesa disponível, o barulho das conversas e do manuseamento de loiça continuava no mesmo tom e ninguém desviava o olhar do seu galão e pastel para a observar. Apesar de ser discreta, a educação e o sorriso com que brindava o empregado que a atendia eram um prazer acrescido ao seu trabalho diário na pastelaria do centro da cidade.

Apresentava ao empregado o saquito de pano, feito por um dos filhos no ATL na escola primária, e pedia: 5 pães de água clarinhos para levar e mais 1 pão de água com manteiga para comer agora. Era sempre o mesmo, dia após dia. Tirava da mochila um livro e começava a ler.

E era precisamente no livro que residia a curiosidade dos empregados da pastelaria. Enquanto a atendiam e serviam, espreitavam o livro, procurando saber o título e se a leitura ia avançada. Todos queriam ser os primeiros a conhecer e a divulgar aos colegas um novo livro. Era como se fosse um jogo. Já muitos livros tinham sido lidos naquela pastelaria por aquela cliente, uns mais volumosos, outros fininhos, alguns de bolso, outros de capa dura, de autores estrangeiros, mas sobretudo muitos de autores portugueses e isso tinha atraído a atenção e curiosidade dos empregados. Até já conheciam alguns escritores recorrentes. Volta e meia lá aparecia mais um livro do autor X, ou do Y, muitas vezes do autor Z! Que livro estaria agora a ler?! Já teria terminado o anterior e começado a ler um livro novo?!

Esta espécie de jogo, tacitamente assumida e aceite por todos os intervenientes, tinha como consequência que às segundas-feiras, mesmo com a pastelaria completamente cheia de clientes, aquela cliente era atendida em tempo recorde. Independentemente do estado de avanço na leitura detetado na sexta-feira, o fim de semana poderia ter sido muito produtivo e na segunda-feira já estar a ler um novo livro, que queriam descobrir qual era. Por outro lado, nos dias após ser constatado o início da leitura de um novo livro e enquanto o volume das folhas à direita fosse superior ao volume das folhas à esquerda enquanto a cliente o lia, a pressa para a atender já não era notória, apesar de ser sempre atenciosamente e muito bem servida.

Para além da simpatia, do sorriso, da certeza do pedido, do saco de pano para o pão e da incógnita do livro, os 4 empregados da pastelaria gostavam de tentar perceber pelas expressões da cliente o tipo de livro que lia. Enquanto segurava o pão com uma mão, com cuidado para que a manteiga derretida no pão acabado de sair do forno não pingasse, com a outra mão segurava o livro, lia e no seu rosto iam aparecendo expressões reveladoras. Por vezes divertida, quase gargalhava em voz alta, noutras situações esbugalhava os olhos, ou franzia a testa, torcia o nariz e revirava os olhos. Já tinham reparado que naturalmente sorria enquanto lia, sinal que o livro lhe estava a dar prazer, mas também já lhe tinham vislumbrado os olhos brilhantes, com lágrimas...

Terminava de comer o pão e continuava a ler, abstraindo-se dos barulhos e movimentos em sua volta. Era só ela e a história do livro. Chegada a hora de se ir embora fechava o livro e suspirava, voltando o mundo real. Os empregados viam-na sair, levando o saquito de pano com os 5 pães de água e também eles voltavam ao mundo real. No ar ficava o aroma a pão acabado de cozer e a expectativa de um novo livro no dia seguinte.

Chá, café...ou um copo de vinho tinto

  Ouvi o silvo da chaleira ao lume, a água fervia, o chá ficaria pronto num instante… Mas não tenho por costume fazer chá, nem oferecer ch...