Acordar hoje não foi fácil. Abri
os olhos a custo e apenas vi escuridão. Ainda era noite, as horas de sono não
tinham sido suficientes, no entanto era hora de levantar. Há muito que não
tinha um pesadelo e ter passado a noite a gritar e a asneirar com os meus
colegas sobre a contabilização ou não da superfície de pavimento de uma
varanda, coisa ridícula e realidade bem contrária à minha natureza, não me
permitiu um sono regenerador.
O sonho da noite anterior ainda
me inquieta enquanto me arrasto pelo passeio. A chuva deu uns minutos de
tréguas, no entanto o céu cinzento promete nova torrente para breve. A ausência
de sol, aquelas nuvens baixas que me definham os sonhos, o corpo sobrecarregado
com o guarda-chuva, o casaco que se revelou quente de mais, a mala que, para
além do peso habitual, transporta hoje também um livro, e os quilos ganhos nas
festas de natal e ano novo, aliados à falta de motivação para ir trabalhar e à
frustração de ainda ter de percorrer este itinerário diariamente, quando
poderia estar já a trabalhar noutro local, tornam penosos estes 20 minutos de
caminhada matinal.
Enquanto caminho, sem vontade e
sem pressa de chegar, apesar de manter o passo rápido que herdei do meu pai,
olho para o chão. Não vou a apreciar a paisagem, conheço-a de cor: os
maravilhosos monumentos ao largo dos quais passo, as cadeiras das esplanadas
que devo contornar, a cor do rio conforme o estado atmosférico, o temporizador
do semáforo, o cuidado que devo ter com os ciclistas que não param ao sinal
vermelho, o cheiro de cada uma das pastelarias, os escaparates dos postais ao
longo das ruas, a melodia dos cânticos que ecoam da igreja e me revigoram o
espírito.
Olho para o chão e observo. Detenho o olhar,
não nos motivos artísticos da calçada portuguesa, onde os há, mas nas tampas
técnicas que sarapintam os passeios, contrastando com o branco do calcário.
Círculos e quadrados negros na pedra branca. Tampas técnicas de saneamento,
água, eletricidade, gás, telecomunicações, semaforização…de todo um mundo
subterrâneo, desconhecido, paralelo e imprescindível ao funcionamento deste
nosso mundo exterior, belo e funcional. Descubro no solo das nossas ruas, nos
passeios da cidade, um interessante e variado catálogo de arte urbana por
descobrir e reconhecer.
Lá por serem as portas desse
universo horripilante das engenharias, que nos permite ter água e esgotos
canalizados, ter eletricidade em todo o lado, ter telefone, net e televisão por
cabo, fibra ou o que mais venham a inventar, ter gás sem que seja necessário
que o vendedor de botijas nos bata à porta (oh!) e ter um trânsito minimamente
regrado através de sinais luminosos, não quer dizer que não possam ser belas!
Observo e verifico que algumas delas são de facto inesperadamente belas. Há
tampas com quadrículas, com ondinhas, com bonequitos estilizados, com padrões
geométricos, com desenhos, letras, símbolos e logótipos, com estrelinhas…
A caminhada, o ar fresco da manhã
e a descoberta do maravilhoso mundo das tampas técnicas, acabou por me relaxar,
melhorar o humor e fazer-me esquecer o pesadelo. Após um revigorante café
sento-me finalmente em frente ao computador para dar início a mais um dia de
trabalho.
Tiro os auscultadores da gaveta
da secretária numa tentativa de me abstrair dos ruídos envolventes. Hoje a
banda sonora da jornada será o Requiem de Mozart!
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