Era uma vez... Kafka revisitado




Esta história ou estória, conforme queiram acreditar se trate do retrato de um local, personagens e acontecimentos reais ou de pura ficção, saída de um exercício rebuscado de imaginação, começa como todas as outras histórias e estórias: era uma vez…

Era uma vez um serviço público onde trabalhavam várias pessoas, rotuladas, hierarquizadas e encaixadas conforme as suas habilitações literárias. Como muitos dos serviços públicos, também este ocupava um edifício histórico religioso, toscamente adaptado às novas funções. Nas manhãs frescas de primavera em que se abria a janela, na esperança de que o ar límpido e renovado do início de dia trouxesse vontade e inspiração, ainda se conseguia respirar uma réstia de história vinda do claustro manuelino. Das divisões e compartimentos originais pouco ou nada sobrevivera, os espaços foram esventrados, violados, transformados, divididos e ampliados sucessivamente com elementos, mobiliário, tetos, pavimentos e iluminação de fraca qualidade e gosto duvidoso. Ficaram as memórias e o frio do inverno entranhados nas paredes grossas de pedra.

Como qualquer serviço que se queira eficiente também este tinha regulamentos, normas de procedimento e chefias distribuidoras de trabalho pelos subalternos, mediante elaborados princípios de equidade, competência, aptidão profissional e respetivas habilitações. Princípios esses tão elaborados e transcendentes que se tornavam inacessíveis e incompreensíveis a qualquer mero mortal que, na sua condição inferior, os questionava, de forma mais ou menos audaz, mais ou menos dissimulada, mas nunca eficaz.

Nesse serviço, público, todos os santos dias, com exceção dos dias santos, os funcionários subiam a escadaria, os que consideravam que escadas também são percursos válidos, os outros optavam pelo elevador, em direção ao seu posto de trabalho, fieis e dedicados à causa pública ou simplesmente cumprindo com a sua cruz a via-sacra diária que resignadamente aceitavam, na esperança de mudanças que teimavam não acontecer. Apesar da rotina dos horários e da monotonia do trabalho, cada vez que pela manhã atravessavam o átrio de entrada, sabiam que uma infinidade de possibilidades e de improbabilidades poderiam acontecer, por mais estranhas, bizarras e surreais que fossem, alimentadas por personalidades patogénicas que habitavam diariamente aquele espaço, quem sabe algum ser sobrenatural, preso na história e no espaço do edifício. Sobreviviam, alguns com lágrimas, muitos com raiva, outros com elegante jogo de cintura, um ou outro com indiferença e uns quantos com uma boa dose de comprimidos. Valia-lhes a esperança de que o seu esforço fosse realmente um serviço público.

Sobreviviam os funcionários e os utentes, pacatos e cumpridores cidadãos, que na roleta do percurso do seu requerimento poderiam receber a bênção de acertar à primeira rodada ou ficar suspensos num interminável rolar, ansiando a desejada conclusão do procedimento. Eventualmente todos se sentiam felizes, uns e outros, pois todos iam consentindo o desenrolar diário das situações vivenciadas e o sorriso, mesmo que tímido, ou sínico, ainda se vislumbrava nos seus rostos em determinados momentos. Bem, se não era felicidade seria, porventura, medo…ou impotência!

Apesar de tudo, melhor ou pior, mais expedito ou mais demorado, o serviço lá ia funcionando e o semblante dos que se cruzavam nos seus espaços alternava entre o sombrio e o divertido, pois se há qualidade humana de realçar é a capacidade de rir e de transformar tragédias em comédias.

Aconchego




Quando recebemos a bombástica notícia que vamos ter um filho, naquele misto de felicidade, medo e ansiedade, o que mais desejamos é que seja “normal”. Depois de a criança nascer só queremos que ela seja tudo menos normal, aspiramos que seja excecional! Desejamos que seja um ótimo atleta, com dotes artísticos fenomenais, muito bom aluno e ainda sossegado, obediente, trabalhador, interessado, educado, silencioso, que coma bem e durma ainda melhor! Uma criança “normal” é um aborrecimento: tira-nos horas de sono, enche a casa de sons de brincadeiras e cantorias, chora, faz birras, desarruma, torce o nariz à refeição saudável, diz que não gosta disto ou daquilo e, como se não bastasse, está mais interessada em brincar descontraidamente e em ser feliz do que em ser a melhor. A maior prova de amor a que a vida nos submeterá é a de amarmos os filhos incondicionalmente, tal como eles são.

Tenho uma parede do corredor da minha casa preenchida com fotografias emolduradas, a maior parte delas de quando os meus filhos eram pequeninos. Frequentemente observando as fotos experimento um sentimento de nostalgia. Que saudades de quando eram pequenos, de quando cabiam aninhados no meu colo, de quando pegava nas suas mãozinhas pequenas e as envolvia com as minhas, de quando o centro do seu mundo éramos nós, os pais, saudades do tempo em que estavam completamente dependentes dos nossos cuidados, saudades do tempo em que várias vezes desejei que fossem mais crescidos, mais velhos e independentes…

Agora são mais velhos, mais crescidos e independentes e, nós os pais, podemos já não ser o centro dos seus mundos, e, por muito que nos custe, é bom que assim seja, mas sei que teremos sempre um lugar especial nas suas vidas e corações, seremos sempre um pilar, um pilar com fundações bem firmes, pronto a sustentar todas as sobrecargas, pressões, oscilações e abalos sísmicos que possam surgir nas suas vidas. Sei isto porque também sou filha, porque também voei, tornei-me independente e autónoma dos meus pais, mas eles, o pilar da minha vida, permanecem fortes e sempre presentes, amparando e acarinhando os seus filhos num vínculo de amor recíproco e imensurável.

A ambivalência de sentimentos e a proporção física dos abraços molda-se e modifica-se ao longo dos anos mas nunca deixam de ser momentos de prazer supremo - o aninhar o filho bebé nos braços num aconchego de segurança, o reconforto do colo que a criança recebe, envolvida pelo abraço firme, o carinhoso entrelaçar de corpos e o sereno repousar no ombro amigo do filho adolescente, a paz alcançada num abraço seguro e maduro de amor sublime entre pais e filhos adultos.

Porto Seguro




Entrei na igreja a caminho do trabalho. Seria só um pequeno desvio, uns cinco minutos, não mais do que isso. Entrei. Decorria a celebração da primeira missa do dia. Apesar da hora, a igreja estava composta, surpreendi-me com a quantidade de crentes a assistir a uma missa semanal, logo pela manhã. Assim que entrei experimentei uma sensação de paz, tranquilidade, conforto, segurança, uma sensação semelhante à de uma criança a ser acolhida nos braços de seus pais.

Como não me ia demorar e para não perturbar a celebração permaneci de pé, ao fundo da igreja. Pela nave única de abóbada manuelina ecoava um cântico que me encheu a alma. Interiorizei a serenidade da música e deixei-me levar pelo momento, aquele momento em que o tempo parece ficar suspenso e como um acontecimento cósmico excecional todos os momentos passados, sentidos com a mesma intensidade e emoção, voltam a estar presentes, a ser (re)vividos
.
Entrei com a intenção de rezar, talvez, de agradecer, sem dúvida, mas principalmente com a ideia de, mais do que pedir um milagre, pedir a força necessária a quem na altura tanto precisava. Entrei também com a vontade de, por momentos, conseguir parar e afastar-me das questões mundanas que me ocupam os dias, para pensar e meditar, para receber uma lufada de espiritualidade.

O facto de estar a ser celebrada a missa revestiu o templo de maior religiosidade, assumindo-se como casa de Deus e não apenas mais um muito procurado monumento nacional. Muito mais do que o espaço físico de grande beleza arquitetónica e escultural é um espaço para sentir e viver Deus, seja de que maneira for, com mais ou menos fé, em procura ou mesmo em negação.

O certo é que fui tocada por essa lufada de espiritualidade, por essa fé meio adormecida. Entrei no templo e tive a perceção de ter entrado numa dimensão paralela, serena, em paz, onde tudo tem o seu sentido, sem explicações, sem lógica, apenas sentido, um sentir ténue e profundo, bem no fundo, no entanto presente. Se conseguisse trazer para a superfície do meu ser esse sentimento…mas não é algo que se consiga em 5 minutos, vai-se construindo, alimentando.

Sentindo-me reconfortada e revigorada saí. Renovada inspirei o ar fresco da manhã e segui o meu caminho. Durante meses foi este o meu pequeno-almoço espiritual. Diariamente, estes minutos de pausa, de oração, fortaleciam-me na esperança de fortalecerem também, física e espiritualmente, aqueles, alvo da intenção das minhas preces…mas o milagre não aconteceu.

Deliciosas palavras


Os frascos de vidro alinhavam-se ordeiramente na bancada, prontos a receber a compota de morango que ainda fervilhava na panela. O doce aroma da fruta cozida em calda de açúcar insinuou-se por toda a casa… Não, não aconteceu nada disto, infelizmente, mas queria tanto escrever algo com a palavra compota!

Na língua portuguesa, como em todas as outras, suponho, há palavras lindas, poderosas, palavras que enchem a boca, palavras que só de serem invocadas espicaçam os nossos sentidos. Compota é uma delas! Infelizmente generalizou-se a denominação de doce e a palavra compota ficou esquecida, em desuso, perdida nos livros de culinária das nossas avós, carinhosamente escritos com uma caligrafia perfeita e redondinha. Perante a frase “…Um fraco de doce de ameixa” não tenho nenhuma reação que mereça referência, apenas penso num frasco, com doce de ameixa! Por outro lado, se a frase for “ …Um frasco de compota de ameixa”, humm, que sonoridade, “compota de ameixa”, as palavras derretem-se na boca na perspetiva da polpa da fruta fundida no açúcar, várias mensagens são de imediato enviadas ao cérebro que recria no imaginário o processo de fabrico da própria compota: a fruta cortada em pequenos pedaços depositados dentro de uma grande panela, o açúcar a cobrir a fruta, tornando-se líquido numa calda divinal que borbulha, borbulha fervendo de calor e de prazer, libertando durante horas um aroma doce inconfundível que se entranha no espaço e no corpo. Os sentidos reagem, sentimos o odor da fruta em ebulição com o açúcar, sentimos-lhe o sabor, sentimos saudades de uma recordação perdida, de infância. Perante “compota de ameixa” o cérebro é ativado num processo criativo e imaginativo que se demora e deleita com a imagem do doce (sim, do doce) sobre uma torrada ainda a fumegar num contraste de texturas, temperaturas e sabores, a imagem de uma tarte recheada com a compota a arrefecer num qualquer parapeito de janela…

Há palavras que têm uma sonoridade tão ondulante que ao serem pronunciadas provocam um enrolar da língua que chega a ser sensual. Caramelo é uma delas. Se aliada à sensualidade da sua sonoridade for associada uma sensação de prazer, refiro-me a “caramelo”, estamos perante mais uma das maravilhosamente ricas e belas palavras da nossa língua. E quem diz caramelo diz rebuçado. Se bem que rebuçado insinua-se menos que caramelo, é mais agressivo, mais direto nas suas intenções, é para dar prazer, sem insinuações e sem contemplações. Caramelo pode referir-se a um estado líquido, cremoso escorrendo, sólido macio a derreter-se na boca ou sólido e duro à espera de ser trincado. A palavra caramelo sugere variados conceitos, texturas e estados, sugere sensações deliciosamente insinuantes.


Para cobrir e enfeitar os bolos de aniversário dos meus filhos sempre fiz uma mistura de chocolate derretido com um pouco de manteiga e natas: cobertura de chocolate! “Cobertura de chocolate” é também daqueles conjuntos de palavras que soam muito bem…e sabem ainda melhor. São palavras quentes e deliciosas. Cobertura transmite-nos conforto, segurança e chocolate…bem chocolate evoca-nos o céu! Mas parece afinal que a “minha” cobertura de chocolate tem o pomposo mas estéril nome de ganache de chocolate. Ganache nem sequer é uma palavra portuguesa. A questão é que ganache é o nome dado ao preparado que tanto serve para cobertura como para recheio. Ok, então poupa-se uma palavra mas perde-se tanto em sonoridade, em sensualidade, em prazer, em sensações. Uma vez que, conforme significado da palavra, cobertura de chocolate não se possa referir à mesma substancia utilizada em recheios, tenho como sugestão a inclusão de uma nova palavra no dicionário português: chocolatura! “ Vou fazer uma chocolatura para cobrir e rechear o bolo de aniversário do meu filho”. Chocolatura, Heis uma nova deliciosa palavra!

Chá, café...ou um copo de vinho tinto

  Ouvi o silvo da chaleira ao lume, a água fervia, o chá ficaria pronto num instante… Mas não tenho por costume fazer chá, nem oferecer ch...