Esta história ou estória,
conforme queiram acreditar se trate do retrato de um local, personagens e
acontecimentos reais ou de pura ficção, saída de um exercício rebuscado de
imaginação, começa como todas as outras histórias e estórias: era uma vez…
Era uma vez um serviço público
onde trabalhavam várias pessoas, rotuladas, hierarquizadas e encaixadas conforme
as suas habilitações literárias. Como muitos dos serviços públicos, também este
ocupava um edifício histórico religioso, toscamente adaptado às novas funções.
Nas manhãs frescas de primavera em que se abria a janela, na esperança de que o
ar límpido e renovado do início de dia trouxesse vontade e inspiração, ainda se
conseguia respirar uma réstia de história vinda do claustro manuelino. Das
divisões e compartimentos originais pouco ou nada sobrevivera, os espaços foram
esventrados, violados, transformados, divididos e ampliados sucessivamente com
elementos, mobiliário, tetos, pavimentos e iluminação de fraca qualidade e gosto
duvidoso. Ficaram as memórias e o frio do inverno entranhados nas paredes
grossas de pedra.
Como qualquer serviço que se
queira eficiente também este tinha regulamentos, normas de procedimento e
chefias distribuidoras de trabalho pelos subalternos, mediante elaborados
princípios de equidade, competência, aptidão profissional e respetivas
habilitações. Princípios esses tão elaborados e transcendentes que se tornavam
inacessíveis e incompreensíveis a qualquer mero mortal que, na sua condição
inferior, os questionava, de forma mais ou menos audaz, mais ou menos
dissimulada, mas nunca eficaz.
Nesse serviço, público, todos os
santos dias, com exceção dos dias santos, os funcionários subiam a escadaria,
os que consideravam que escadas também são percursos válidos, os outros optavam
pelo elevador, em direção ao seu posto de trabalho, fieis e dedicados à causa
pública ou simplesmente cumprindo com a sua cruz a via-sacra diária que
resignadamente aceitavam, na esperança de mudanças que teimavam não acontecer.
Apesar da rotina dos horários e da monotonia do trabalho, cada vez que pela
manhã atravessavam o átrio de entrada, sabiam que uma infinidade de
possibilidades e de improbabilidades poderiam acontecer, por mais estranhas, bizarras
e surreais que fossem, alimentadas por personalidades patogénicas que habitavam
diariamente aquele espaço, quem sabe algum ser sobrenatural, preso na história
e no espaço do edifício. Sobreviviam, alguns com lágrimas, muitos com raiva,
outros com elegante jogo de cintura, um ou outro com indiferença e uns quantos
com uma boa dose de comprimidos. Valia-lhes a esperança de que o seu esforço
fosse realmente um serviço público.
Sobreviviam os funcionários e os
utentes, pacatos e cumpridores cidadãos, que na roleta do percurso do seu
requerimento poderiam receber a bênção de acertar à primeira rodada ou ficar
suspensos num interminável rolar, ansiando a desejada conclusão do procedimento.
Eventualmente todos se sentiam felizes, uns e outros, pois todos iam consentindo
o desenrolar diário das situações vivenciadas e o sorriso, mesmo que tímido, ou
sínico, ainda se vislumbrava nos seus rostos em determinados momentos. Bem, se
não era felicidade seria, porventura, medo…ou impotência!
Apesar de tudo, melhor ou pior,
mais expedito ou mais demorado, o serviço lá ia funcionando e o semblante dos
que se cruzavam nos seus espaços alternava entre o sombrio e o divertido, pois
se há qualidade humana de realçar é a capacidade de rir e de transformar
tragédias em comédias.
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