Laços de sangue




Polvilho a carne com malagueta moída, um pouco de sal, orégãos e tomilho. Na estação de rádio toca mais um sucesso dos anos 80. É impossível não dançar. Enquanto, agarrada à colher de pau, faço uma espécie de coreografia, canto desafinada o refrão da canção. A propósito desta música recordo uma muito particular ida ao cinema na minha adolescência. No início dos anos 80 a minha tia mais nova levou os 6 sobrinhos mais velhos ao cinema para que os adolescentes e jovens da família convivessem num ambiente que lhes fosse estimulante. Independentemente da temática e qualidade do filme, que recordo com um sorriso, o que mais me marcou nessa ida ao cinema foi sentir-me parte de um grupo, de uma família unida, de pais, irmãos mas também avós, tios e primos.

Efetivamente essa união familiar tem-se manifestado forte em variadíssimas ocasiões, nas boas e nas menos boas. O elo que nos une é mais do que um elo de sangue, é um elo de amor. Apesar das diferenças que nos caraterizam, com personalidades e feitios distintos, sabemos que podemos contar sempre uns com os outros, que apesar de alguma eventual desavença estarão lá para nós, para o que precisarmos, sabemos que não nos deixarão desamparados. É claro que, como em todas as famílias, há sempre uns mais impulsionadores desta dinâmica familiar. E ainda bem porque graças a eles, apesar das distâncias físicas, vamos mantendo um contacto regular e encontros com alguma periodicidade.

Dos piqueniques familiares anuais, aos fins de semana de primos, passando pelos almoços e jantares, encontros familiares alargados, casamentos, batizados e natais, todas as oportunidades servem para fortalecer os laços familiares, no entanto, é nas pequenas coisas, nos pequenos gestos e nos momentos mais difíceis que se revela a verdadeira união familiar. Tenho a dizer que sou realmente abençoada com uma família maravilhosa.
Tenho testemunhado relatos de famílias verdadeiramente extraordinárias, de famílias que se cuidam, protegem e amam numa dimensão cada vez mais difícil de encontrar, consequência muitas vezes das distâncias, das rotinas e da excessiva ocupação pessoal. São famílias que se unem e se revezam no cuidado a idosos, a doentes, deficientes, jovens, crianças ou recém-nascidos. São famílias que se unem na dureza do trabalho mas também na altura de celebrar!

Não escolhemos a família, é-nos dada como oferenda de nascimento. Escolhemos, no entanto, alimentar, ou não, essa relação. Manter a circular o sangue que nos une depende de nós, manter os laços unidos e apertados depende da nossa vontade, da nossa disponibilidade, da nossa entrega, do nosso amor. Mas não tendo escolhido a família onde nascemos a vida dá-nos a oportunidade de escolher a sua continuidade, criando um novo núcleo familiar, uma nova família que também terá de ser alimentada com carinho, dedicação, disponibilidade, momentos e com muito amor. Uma família que seja exemplo para as gerações seguintes e que se ramifique como uma árvore frondosa, cheia de vida, onde a seiva circula livremente, chegando em força a todos os seus frutos. Uma seiva feita de sangue e de amor.

Noite escura, sem luar...




A noite estava escura, sem luar. Atrevi-me a sair da proteção da tenda, calcei as botas às apalpadelas e dei um passo. A escuridão era total. Não tinha lanterna nem fogo nem nenhum ponto de luz. Também não sabia bem para onde me dirigir. Queria encontrar os meus companheiros mas, sozinha na noite, temia perder-me. Tentei encontrar algumas referências e decidir qual a direção a seguir porém, olhando em volta nada via, nem luz nem movimento. O terreno era ligeiramente inclinado e lembrei-me que tínhamos decidido montar as tendas na zona mais baixa do declive. Seria para cima o caminho. Dei uns passos a medo. Completamente sozinha na floresta e na escuridão total, avançava lentamente. Tinha percorrido alguns metros quando uma onda de pavor me percorreu. E se não os encontrasse? Já não conseguia voltar para trás. Tinha-me afastado bastante da tenda e, entre as árvores e vegetação, já não a conseguia ver. Sem luz nunca a encontraria de volta e não valeria a pena tentar fazer o percurso contrário, tinha noção que o mesmo não fora linear. Perante tal cenário tive de fazer um esforço para que o pânico não me dominasse, não me paralisasse. Tinha de sair dali, havia de ganhar coragem e avançar. A medo dei mais uns passos. A cada passo os sons da floresta pareciam ganhar vida. Rodeada de trevas, com o sentido da visão completamente anulado e a audição ganhando intensidade, deparei-me no meio de uma orquestra de sons estranhos e desconhecidos. Ouvia movimentos, rastejar, estalidos, piares, o som das árvores, das folhas, dos ramos, sons da brisa, sons de um mundo novo e desconhecido, tão cheio de vida, quando pensamos que apenas existe silêncio. Mais um estalar, movimento, folhas e ramos remexidos, partidos...passos! Paro. Pára o som também…são os meus passos! Respiro fundo e ganho coragem de retomar o caminho. Mais uns passos e a cada passo novos ruídos, novos medos. Não sei bem para onde vou mas continuo a andar, devagar. Paro de novo e percorro com o olhar a floresta à minha volta. Nada. Nem luz nem o som de vozes. Estou completamente só. Continuo o percurso que tenho esperança me leve aos meus amigos. Avanço mais um pouco na floresta, com passos curtos e inseguros, não vejo o chão, não sei o que piso, apenas oiço os gemidos dos galhos partidos, das folhas pisadas, dos ramos abanados à minha passagem. Ali! Uma luz, vejo uma luz, um clarão ainda difuso mas visível! Apresso o passo. O coração dispara. À medida que avanço, agora mais rapidamente, torna-se nítida a fogueira, a luz das chamas mais intensa, dominando a noite, oiço vozes. Os sons noturnos da floresta são agora completamente abafados pela melodia de uma guitarra, habilmente dedilhada, por vozes alegres, conversando e cantando. Corro naquela direção e alcanço o grupo animadamente reunido ao redor da fogueira. “Sempre vieste” dizem. Aceno afirmativamente, meio envergonhada. Sento-me e deixo-me envolver pelo calor e reconforto da luz e do fogo. Mais tranquila relaxo e tento esquecer aquele percurso. Começo a conversar e a cantar. Deixo que a paz e a alegria sejam os sentimentos que dominarão o que resta da noite. À volta da fogueira, enquanto conseguirmos fintar o sono, rimos, cantamos, conversamos, criamos e fortalecemos laços de companheirismo e amizade que nos ajudarão a crescer. Sinto-me verdadeiramente feliz e orgulhosa e assim me sentirei durante todo o acampamento, durante todos os acampamentos e atividades.

Apesar do esforço nunca mais consegui esquecer aquela primeira noite do meu primeiro acampamento como escuteira, teria eu uns 11 ou 12 anos. Por muito difíceis que tenham sido, há momentos que devemos sempre recordar porque foram passos importantes que demos no percurso da nossa vida. Momentos superados que nos fizeram crescer e aprender. Eu aprendi que nunca se vai para o campo sem uma lanterna!

Solidão




Quando no último ano da faculdade estive 3 meses a estudar nos arredores de Londres, tive a oportunidade de viajar por Inglaterra, Escócia e País de Gales. As viagens por Inglaterra e Escócia fiz na companhia dos meus colegas e companheiros do programa Erasmus, mas a viagem ao País de Gales acabei por fazer sozinha. Foram 3 dias de solidão, num país com terras de nomes impronunciáveis, cheio de misticismo, paisagens desertas e deslumbrantes. O mais marcante dessa viagem de 3 dias revelou-se ser o silêncio. O silêncio da paisagem deserta, apenas cortado pelo assobiar do vento, o silêncio da imensidão do mar, interrompido pelo bater das ondas, mas particularmente o silêncio da minha voz. Nesse espaço de tempo em silêncio, sem ninguém ao meu lado, sem comunicações, sem personalidade para falar com desconhecidos, tive muitas conversas silenciosas comigo mesma. É no silêncio da solidão que melhor ouvimos a nossa própria voz, a interior, a mais sincera.

Desde muito nova que procuro momentos de solidão. Não me assustam. Permitem-me crescer, libertar-me, conhecer-me, observar e compreender o mundo.

Se por vezes recorria a um efetivo isolamento físico, onde na escuridão do meu quarto me encontrava com os meus pensamentos e com a música e procurava momentos só meus, momentos que não seriam partilhados com pais, irmãos ou amigos, outras vezes encontrava e gozava a solidão num mar de gente desconhecida. Sempre me deu muito gozo ser uma anónima no meio da multidão, percorrer sozinha ruas apinhadas de gente, observar os rostos de quem comigo se cruza sem que necessite uma palavra, um cumprimento, ou simplesmente abstrair-me de todos os que me envolvem e no bulício da cidade encontrar o silêncio da minha voz interior numa quietude serena de quem tem tanto com que se deslumbrar, absorver e interiorizar.

Acredito que o prazer que a solidão me dá apenas é possível porque não sou uma pessoa só. Tenho a felicidade de sempre ter vivido rodeada de família e amigos que verdadeiramente me amam. Família e amigos que respeitam o meu isolamento mas que nunca me deixarão só, que seguramente estarão sempre comigo, no deserto mais recôndito ou na avenida mais movimentada. Família e amigos que preenchem os meus silêncios com amor.

Lx 1982 - hora de ponta.




O autocarro vinha apinhado, como todos os dias àquela hora de fim de tarde. Os muitos que formávamos fila à sua espera fizemos-lhe sinal de paragem. Parou e, apesar de estar completamente cheio, abriu as portas, não apenas para que alguns passageiros saíssem, mas também para que entrassem tantos quantos conseguissem. Quando as portas se abriram foi notório o movimento dentro do autocarro. Um ondular de corpos compactados numa deslocação sincronizada no sentido da saída. O espaço libertado foi rapidamente preenchido por outros corpos que tomaram o lugar disponível, voltando a encher completamente o veículo. O meu pequeno corpo encontrou-se no meio daqueles corpos cansados e suados ao fim de um dia de trabalho, de escola ou de passeio. A descompressão das preocupações e do trabalho físico começava a acontecer tornando os corpos lânguidos, moldáveis e peganhentos.

Encaixei-me como consegui e transferi a pesada mochila para a frente do meu corpo tentando manter uma bolsa de ar respirável, difícil do meu metro e meio de altura, e evitando o contacto direto com os corpos dos outros passageiros. Com o movimento da mochila os corpos agitam-se, ajeitam-se, reposicionam-se. Uma pisadela, um cotovelo inoportuno, um braço esticado segurando a pega que pende do varão metálico junto ao teto. Mau, este braço levantado com a axila à altura do meu nariz não estava nos meus planos. Ligeira rotação na esperança de me conseguir colocar numa posição mais favorável. Forço o movimento. A mochila cheia e pesada roça os outros corpos, com as arestas e vértices das pastas, cadernos e réguas agride os alguns passageiros. Paciência, antes um caderno espetado nas costelas de outra pessoa que um sovaco no meu nariz. Resmungam: “Malditos miúdos! Com as suas mochilas não têm respeito por ninguém!”. Pois sim. Sinto-me triplamente agredida. Agredida fisicamente porque tenho de carregar a pesada mochila e ainda assim conseguir encaixar-me no meio das outras pessoas, agredida verbalmente porque sou vítima de injúrias e agredida psicologicamente porque escolher entre o queixume de um adulto e oxigénio não é fácil para alguém de 12 anos.

Nova paragem. Novo movimento de corpos. Novo reposicionamento, agora já mais perto da porta de saída. Se houvesse um espacito lá mais atrás. Parece-me que sim, há um espaço deixado vago (espaço, não lugar), que não foi ocupado no último reposicionamento. Acho que consigo lá chegar. “Com licença, com licença”. Avanço lentamente, contorcendo-me em movimentos o mais fluídos possíveis, tendo sempre como escudo a pesada mochila que vai abrindo caminho entre resmunguices e queixumes. Estou quase, já sinto o ar menos pesado, estico o braço e agarro um varão vertical. Com a força do braço puxo o peso do corpo e da mochila para junto do varão. Consegui!

Volto a colocar a mochila às costas e continuo a viagem mais descontraída, com espaço e oxigénio e sem mais contactos corporais adversos. Aqui até tenho visibilidade para o exterior, podendo apreciar a paisagem. O autocarro percorre as movimentadas ruas da cidade que já se encontram artificialmente iluminadas. É linda a cidade! Nova paragem e nova movimentação. Agora bem mais vazio o autocarro até já tem livres alguns lugares sentados. Permaneço de pé, já não falta muito para sair. Mais uns minutos e finalmente o autocarro pára na minha paragem de saída. Desço orgulhosa do autocarro: sobrevivi a mais uma hora de ponta!

Reencontro



Fui a primeira a chegar. Estava ansiosa por aquele reencontro, combinado à medida da minha disponibilidade. Dos 12 anos passados no colégio guardo muitas recordações e amizades. Quando há mais de 30 anos me separei das minhas colegas e amigas de sempre, tendo ido estudar para um liceu sem que nenhuma delas me tivesse acompanhado, uma vez que da turma inteira eu fui a única a seguir a área que dava acesso a arquitetura, mantive contacto com as que me eram mais chegadas. Com o passar dos anos, ao longo destes mais de 30 anos, fui perdendo o convívio com praticamente todas elas.

Contrariamente ao que se possa pensar, jantar com estas colegas, algumas das quais não via há 30 anos, não é nada aborrecido nem constrangedor. Não, não passamos o jantar de olhos posto no prato por falta de assunto de conversa, não falamos do tempo, da última tendência da moda, de unhas e penteados, nem aproveitamos o momento para chapar na cara umas das outras como se tornou maravilhosa a nossa vida, com carreiras profissionais de sucesso, com filhos excecionais e com maridos e afins divinais que poderiam ser capas de revista, donos de uma fabulosa herança, para além de sempre disponíveis para levar as crianças às suas variadíssimas atividades e para nos surpreender com aquele gesto ou presente que nos faz subir aos céus…

Estes jantares e reencontros são sempre animadíssimos e divertidos e é com enorme satisfação que constato que ao longo de 12 anos de convivência diária foram criados laços tão fortes que uma vez quebrados…não acontece absolutamente nada! Ao nos reencontrarmos voltamos a unir o ponto de convívio precisamente onde tinha sido quebrado, o espaço de tempo entretanto decorrido não alterou a afinidade, apenas nos fez amadurecer como pessoas e viver experiências pessoais que agora enriquecem a redescoberta e a relação.

A vantagem de ter sido a primeira a chegar foi a possibilidade de usufruir da companhia exclusiva da anfitriã que, apesar da recente troca de mensagens, não via há mais de 30 anos. Foi maravilhoso podermos conversar. A noite foi avançando e, a conta-gotas, foram chegando as antigas colegas. Como, aparentemente, a pontualidade não é uma das qualidades que as possa caracterizar, calmamente pudemos ir apreciando a chegada de cada uma delas, com o tempo e a atenção que permitiu fazer uma receção mais pessoal a todas.

A conversa prolongou-se muito após o jantar, que estava delicioso. Teria lá ficado a conversar a noite toda, não fossem os vários compromissos que tínhamos no dia seguinte, afinal a garrafa ainda tinha vinho e o bule foi reabastecido… chá?! Quando é que elas se tornaram pessoas tão responsáveis?!

Chá, café...ou um copo de vinho tinto

  Ouvi o silvo da chaleira ao lume, a água fervia, o chá ficaria pronto num instante… Mas não tenho por costume fazer chá, nem oferecer ch...