Os processos de capa verde
empilhados à minha volta formam uma espécie de muralha alta que me impede de
alargar os horizontes, de ver para além deles. Enclausurada, sinto-me como num
sonho desagradável, tento correr mas as pernas não respondem à ordem dada pela
vontade de fugir, elas mexem mas não avançam, faço um enorme esforço mas não
saio do lugar. Como Penélope tecendo um sudário enquanto aguardava o regresso
do seu marido Ulisses da guerra de Tróia, também eu vou informando os processos
durante o dia, para de noite alguém voltar a colocar processos na minha
secretária, mantendo a pilha alta. As pedras da muralha são derrubadas mas logo
a mesma é reconstruída.
Na impossibilidade de fugir,
refugio-me cá dentro, isolando-me do que me atormenta. Fico sozinha no interior
da muralha, eu, os processos, o computador…e o meu pensamento, porque esse é
livre, não se confina. Ponho os auscultadores e, contagiando-me pela música,
abstraio-me da envolvente e voo liberta. Alternando com as questões práticas,
funcionais, legais e cada vez menos estéticas, o pensamento divaga e consigo
sentir-me noutro lugar.
Sinto o cheiro do alho frito em
azeite, pronto a receber a broa de milho esboroada e as couves migadas, às quais
adicionarei uns salpicos de vinagre que libertarão o seu odor acre,
proporcionando-me uma viagem às Beiras e aos jantares de amigos. Abro um vinho
tinto que me transporta a África do Sul e à cidade do Cabo e logo me lembro dos
marcadores de copos em madeira e missangas, com a forma de animais selvagens.
Sobre uma tosta coloco um aromático queijo da Serra e visualizo os vales férteis
e verdes que servem de pasto às ovelhas, rego o queijo com mel de rosmaninho e,
enquanto o líquido espesso e translúcido escorre sobre a tosta, vejo-me a
correr num campo primaveril coberto de flores silvestres, amarelas, roxas e
brancas, o sol a bater-me nos olhos, encandeando-me. A luz branca intensa, do
papel virtual, no ecrã do computador desperta-me para a necessidade de terminar
o trabalho.
Mais umas linhas escritas de
análise técnica, mais um processo despachado. Uma pedra da muralha derrubada e
consigo ver mais um pouco da parede à minha frente. Vejo o recado para apagar a
luz quando sair e o desenho que a minha filha fez. Abre-se a porta e entra
alguém, ó, não! Alguém com um processo na mão. O troço da muralha é
reconstruído, já não vejo o desenho.
Isolo-me dentro do espaço
muralhado, oiço apenas a música, observo as letras que já compõem a nova
informação. De olhar desfocado as letras ganham vida, são pessoas, muitas, ao
longe. Aproximo-me e apercebo-me que os corpos estão seminus, sem complexos,
uns deitados, outros em pé a jogar, alguns, mais pequeninos, a brincar, e
outros ainda a passear à beira mar, deixando que as ondas lhes molhem os pés
descalços. Também eu lá estou, a flutuar, deixando-me ir no ondular fresco das
águas atlânticas. O tempo pára na tranquilidade do momento. Deixo-me ir, relaxo,
sinto-me bem. O sol escalda-me a pele. É bom sentir o seu calor contrastando
com a frescura do mar. Mas o sol está forte de mais, encandeia-me. E novamente
a luz branca intensa à minha frente desperta-me para o trabalho.
Mais umas considerações e remissões
para a legislação específica aplicável. Mais uma proposta de decisão e novo
processo despachado. Mais uma pedra da muralha derrubada. É hora de sair.
Amanhã quando voltar a muralha estará reconstruída…
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