Nas manhãs de sábado da minha
infância era acordada pela melodiosa música da gaita de beiços tocada pelo
amolador que anunciava assim a sua presença. A música era sempre a mesma, mas era
a sua familiaridade o que a tornava mais preciosa. Nem todos os sábados o
amolador percorria a minha rua, mas ouvindo o seu toque sabia que estava uma
manhã soalheira. Era um som reconfortante. Algumas vezes esperávamos ouvir a
melodia do amolador para descermos e recorrermos aos seus eficazes serviços: afiava
tesouras e facas e arranjava as varetas dos chapéus de chuva.
Nas manhãs de outono acontecia
acordar com os cantares e o corrupio da apanha da azeitona no olival mesmo em
frente à janela do meu quarto. No final do verão tinham sido os pequenos
tratores e enfardadeiras a acordar-me. Da janela do meu quarto acompanhava o
desenrolar das estações do ano. Ainda no inverno a amendoeira enchia-se de flor
e a alvura da sua copa contrastava com o verde escuro das oliveiras. Chegando a
primavera, o verde do campo era pontuado com algumas flores amarelas, animado
com borboletas e acompanhado pelo cantar dos pássaros. No verão, o verde secava
e o castanho dourado cobria todo o terreno.
Nas tardes de primavera, depois
das aulas, a rapaziada vizinha juntava-se na rua para andar de bicicleta, jogar
à bola ou simplesmente inventar uma brincadeira nova. Os dias de verão, durante
as férias grandes, eram passados na rua, em aventuras e brincadeiras, longe do
olhar supervisor dos adultos, que se encontravam ausentes, a trabalhar. Os mais
velhos tomavam conta dos mais novos e isso era suficiente para garantir a
segurança de todos. Quando os mais novos já tinham idade para ficarem sozinhos
e os mais velhos já não se interessavam pelas infantis brincadeiras, os mais
novos respiravam finalmente o doce aroma da liberdade e viviam os dias ao ritmo
das suas aventuras. Ao fim do dia, os pais, à janela, chamavam-nos de volta a
casa e, quando estava mesmo muito calor, jantávamos na varanda.
Nas quentes noites de verão
dormia de janela aberta e de manhã apreciava acordar com o sol a aquecer-me o
rosto.
Já adolescente, ao regressar das
aulas, por vezes parava no picadeiro. Se se proporcionasse montava um dos cavalos.
Mas a oportunidade de os ver, fazer-lhes festas, falar com os tratadores,
sentir aquele cheiro intenso que se entranhava na roupa e na pele, era já uma regalia.
Na juventude gostava de ir até ao
jardim, sentar-me num banco debaixo de uma frondosa tília e ler. Li alguns
livros protegida por aquela imensa árvore, alguns fizeram-me sonhar, outros
fizeram-me chorar! Há livros que precisam ser lidos em liberdade, envolvidos
pela natureza, para sentirmos bem o privilégio de não os termos vivido entre
muros de arame farpado.
Aos 24 anos deixei Lisboa e fui
viver para a aldeia. As paisagens mudaram, mas a natureza continuou a marcar as
estações do ano.
Aos domingos passei a acordar com
os sons de tiros dos caçadores. Era um som muito perturbador. Nessa altura já
não apreciava as brincadeiras de rua, nem tinha vizinhos da minha idade, mas instalei
uma cama de rede entre 2 árvores do quintal e por lá passei muitos momentos de
descanso, alguns a ler, muitos a sonhar.
Mais do que as cores, na aldeia
são os aromas que marcam e distinguem as estações do ano, provavelmente serão
também as tarefas distintas para quem vive da terra, mas eu da terra apenas
colhia umas folhas de hortelã, alguma salsa, folhas de louro, ameixas e figos
que tinha no quintal, sem qualquer tratamento. Dos produtos da terra recebia
dos vizinhos alfaces, couves, tomates e pimentos, assim como queijo, ovos,
enchidos e carne, após a matança do porco. Mas os cheiros do campo são aromas
únicos, intensos e por muito verde que a cidade seja, não os consegue
reproduzir. São os cheiros da terra, das
plantas, dos frutos e flores, dos animais, o cheiro a lenha e a fumo das
lareiras e das fogueiras… na aldeia até os aromas dos alimentos são diferentes.
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