Finalmente sexta-feira!




Finalmente sexta-feira! Após o regrado almoço na cantina do serviço, vou com uns colegas beber café a uma pastelaria próxima. Um café para cada um e bretzels de chocolate divididos em 2 para partilharmos. Se formos em número par a divisão é pacífica, mas se formos 3 ou 5 há uma metade a mais. Acabo por ser sempre eu a comer a metade sobrante. Come tu, dizem os meus colegas, tu podes, vais ao ginásio! E com muito sacrifício, mas sem culpa, lá acabo por comer mais uma metade do delicioso bolo, saboreando cada dentada, sentindo o crocante da massa alternar com o irresistível chocolate. Sim, sem culpa, porque é sexta-feira e vou ao ginásio. No sábado de manhã vou novamente. Já fui na segunda, na terça e na quarta.

Finalmente sexta-feira, o dia da aula de fight no ginásio. Que aula fantástica, que energia, que power! Nesta aula liberto tanta energia que toda a carga negativa acumulada durante a semana desaparece. Por outro lado, na mesma aula recarrego-me do dobro da energia libertada e sinto-me poderosa, quase ao ponto de desejar ser interpelada por bandidos para lhes aplicar implacavelmente os pontapés, murros, ganchos e joelhadas praticadas.
Sim, a aula de fight irá certamente derreter as indesejadas calorias extra do muito desejado bretzel

Mas mais do que a necessidade de queimar calorias, de baixar níveis de colesterol e de triglicéridos, de controlar a tensão arterial, de diminuir o peso e o volume corporal, de aumentar a força, a resistência e a flexibilidade, as idas ao ginásio funcionam como a conquista de momentos de bem-estar. Bem-estar social, mental e físico, mesmo que por vezes os exigentes instrutores consigam fazer do ginásio um autêntico parque lúdico de tortura. E não são precisos muitos instrumentos para que uma aula ou treino ganhe requintes de malvadez, basta utilizar a diabólica air bike, fazer burpees ou uns determinados agachamentos que rebentam completamente com as nossas pernas, substituindo os músculos por rochedos estáticos que deixam de ter capacidade de contrair e de relaxar…

E com nomes indecifráveis atraem-nos para as exigentes aulas do ginásio que, à semelhança da música dos GNR, também são pós-modernas: CX, TRX, RPM, Step, HIIT, GAP, kick, 3B, zumba, jump e yoga, entre muitas outras. Esqueçam a ginástica aeróbica dos anos 80. Esqueçam a ginástica de manutenção. No ginásio é tudo para matar. Esqueçam também o jogging, para correr só em modo running.

E é por isso mesmo que eu gosto do ginásio, são exigentes, puxam por nós, levam-nos a superarmo-nos sempre mais e mais. Independentemente da idade e estrutura física, para os instrutores somos todos iguais, somos todos igualmente capazes. E é tão bom com, quase, 50 anos e uns quilitos a mais sentir-me igual a uma elegante jovem de 20 anos! Mas no ginásio há também lugar para o convívio e reina o bom ambiente, não só nas aulas, onde apesar do esforço e desgaste físico encontramos energia para rir e brincar, mas também no balneário, nos corredores, junto da receção e na sala de musculação, pois apesar de eu não gostar de puxar ferro, admito que o espaço fica bem mais interessante com aquela parafernália de máquinas, pesos…e seus utilizadores.

Finalmente sexta-feira e depois da ida ao ginásio provavelmente vou jantar fora, mas terei de controlar o entusiasmo e satisfação que me domina depois do fight, pois o meu filho já reclama que o assunto das conversas recai sempre sobre as aulas, o ambiente e os colegas do ginásio, o invejoso. Vou tomar nota para também não conversarmos sobre futebol…

Texto criado para o Adhoc Gym - Condeixa

A herança maior




Acabaram as cerimónias fúnebres, agora podemos voltar atrás?! Podemos rebobinar a fita da vida e corrigir?! Houve um erro de casting, um erro no guião, um erro, definitivamente um erro. Não acredito que aconteceu, não poderia ter acontecido, é impensável e incompreensível a tua morte, pai.

Naqueles dias em que o teu corpo repousava na igreja ainda te tinha. Olhava para ti sereno, com as 9 rosas no teu colo, envoltas pelos teus braços protetores de pai, marido e avô, e esperava que acordasses. As cerimónias foram lindas, tão cheias de significado, tão cheias de amor. A igreja estava cheia, completamente cheia. No altar, acompanhando-te e acompanhando o teu filho, não houve espaço para tantos, bispos, padres, diáconos e acólitos, mais de 50, vindos de todo o país, dos Açores e da Madeira. És importante! Não é vaidade, é orgulho. Sei que na tua humildade não te vias assim, importante, mas a verdade é que foi precisamente a tua humildade, generosidade e honestidade que sempre cativaram quem te conheceu. Humildemente tornaste-te tão grande, tão querido, tão acarinhado, tão admirado. Foi a herança maior que nos deixaste, o exemplo de humildade, de generosidade e de honestidade. E o amor!

Agora tenho-te de uma forma diferente, tenho-te todo em mim. Repara que te trato por tu, nunca te tratei assim, não por distanciamento, por reverência, mas agora que ficaste em mim já não faz sentido invocar-te de outra forma.

As cerimónias acabaram, ficámos sensibilizados e muito orgulhosos por saber e sentir o quanto és importante, para tantos, mas agora podemos voltar atrás?

Voltar ao tempo antes daquelas gotas de chuva terem caído assim que soube da tua partida, gotas de chuva que se misturaram com as minhas lágrimas numa torrente de tristeza. Voltar ao dia em que te fui visitar e me seguraste a mão, naquele último dia em que nos olhámos. Queria voltar atrás e apertar-te a mão com mais força, segurar-te e não te deixar ir, como me seguravas a mão quando eu era criança e corria a teu lado para acompanhar o passo rápido e decidido de quem sabe o seu caminho.

Voltar ao último natal, às últimas férias juntos. Reviver os momentos de convívio, de conversas e de diversão. Queria tornar a ver aquele brilho no olhar e o sorriso discreto e malandro de quem com os netos ganhou o direito de voltar a fazer diabruras. Voltar ao dia em que te pedi que ensinasses a minha filha a andar de bicicleta. E ensinaste-a. Apesar das dores de costas amparaste-a e foi contigo a sua primeira pedalada livre e autónoma, como contigo tinha sido a minha primeira pedalada livre e autónoma numa tarde de verão há 45 anos. Voltar ao dia em que radiante pegaste no teu neto pela primeira vez, voltar ao dia em que orgulhoso me acompanhaste ao altar.

Voltar à infância. Aos dias que me levavas e me ias buscar à escola. Aos dias em que apenas queria a resposta a uma pergunta simples, mas insistias que consultasse a enciclopédia e que encontrasse eu a resposta e aprendesse muito mais. Voltar ao dia em que me pegaste na mão e me levaste a conhecer o meu irmão recém-nascido. Voltar aos dias em que me levavas às cavalitas e em que fazias de cavalinho e nos transportavas, a mim e à minha irmã, às voltas pela casa. Voltar ao tempo em que me chamavam “a menina pescadinha do papá”. Queria voltar atrás e voltar a ter pai e mãe, os 2 pilares da minha vida.

E se eu pudesse voltar atrás voltava a viver tudo de igual forma, com as alegrias e com as tristezas, com as conquistas e com os erros, porque foi com eles que aprendemos e fortalecemos a nossa relação. Se eu pudesse voltar àquele último dia não teria dito palavras diferentes, não teria sido capaz. Nunca fomos de expressar sentimentos, mas sinto que nada ficou por dizer. O que não verbalizámos expressámos com o olhar, com os gestos, com as ações.

Se eu pudesse voltar atrás queria mudar aquele grande erro, o que não podia ter acontecido, o impensável, o incompreensível, a tua morte, pai.

Viagem




O comboio ainda se encontrava na plataforma da estação de Santa Apolónia, iluminado pela frágil luz de fim de dia de inverno, aguardando a hora da partida em direção ao norte, quando surgiu a confusão. Aparentemente tinham sido vendidos 2 bilhetes para o mesmo lugar. O rapaz, de pé, confirmou os dados do seu bilhete no telemóvel e o casal, que já se encontrava sentado, fez o mesmo, confirmando os dados dos seus bilhetes. Comprovou-se a coincidência do lugar nos 2 bilhetes, no entanto, o jovem, de feições desenhadas com mestria e tranquilos olhos azuis, com delicadeza disponibilizou-se a sentar-se num qualquer lugar vago até à chegada do revisor. À hora marcada o comboio iniciou a sua marcha ainda com poucos lugares ocupados. Passados apenas 10 minutos de viagem parou na estação do Oriente onde entraram os passageiros que lotariam todos os lugares de todas as carruagens. Já o comboio seguia viagem, afastando-se de Lisboa e ainda reinava a desordem, com pessoas à procura dos seus lugares, atravessando e cruzando o estreito corredor, passageiros que, tendo encontrado o seu lugar, paravam para colocar a bagagem na prateleira superior, impedindo a passagem, quando surgiu novo constrangimento. Uma jovem rapariga de cabelo preto, longo e ondulado, vestida com camisa branca, calças e casaco pretos, a combinar com as armações dos óculos, tinha bilhete para o lugar onde se sentava um dos elementos do casal protagonista da altercação anterior. Mais uma vez foram verificados os respetivos bilhetes e confirmou-se a coincidência de existirem 4 bilhetes para 2 lugares. O muito sereno e compreensivo jovem, vestido com calças de ganga, ténis all star pretos, blusa preta e sobretudo comprido, que, entretanto, já se encontrava de novo em pé, porque todos os lugares estavam agora ocupados, sugeriu que esperassem pelo revisor que deveria solucionar a situação. Não era a primeira vez que lhe acontecia algo idêntico, mas a rapariga, muito racional e pragmática, insistiu em verificar ela própria o bilhete do casal, alguma coisa teria de estar errada, não aceitando que tivessem sido vendidos 2 bilhetes para cada um dos 2 lugares onde o casal se encontrava sentado. Da sua perspicácia surgiu a constatação que o casal tinha de facto bilhetes para aqueles lugares, daquela carruagem, daquele comboio, àquela hora, desse dia… mas do mês seguinte! Esclarecida a questão, o casal resignado e assumindo o seu engano, levantou-se e cedeu os respetivos lugares aos jovens que finalmente puderam sentar-se. Teria o casal de procurar o revisor e tentar arranjar uma solução para a sua viagem, que, entretanto, já decorria.

Enquanto os jovens se acomodavam nos respetivos lugares trocaram algumas palavras, muito provavelmente relativas à questão dos bilhetes. Já sentados continuaram ainda por alguns instantes a conversar. Quando a pretendente a escritora, que tinha assistido a todo o desenrolar da situação, olhou para trás e os viu a conversar, os seus olhos iluminaram-se e, entusiasmada, comentou com a filha, que viajava no lugar ao seu lado, - Já sei o que vou escrever; vou contar a história do jovem casal que o acaso da duplicação de bilhetes de comboio uniu, tendo passado de completos estranhos para inseparáveis amantes! Bem, admitia que o tema era um pouco piroso e um lugar comum, mas era a história que tinha acontecido ali mesmo... Ou poderia vir a acontecer. As ideias começavam a fervilhar na cabeça da aspirante a escritora, a coincidência dos acontecimentos era enorme e os ingredientes estavam todos lá: dois bonitos jovens da mesma faixa etária viajavam sozinhos rumo ao norte do país, um percalço com os bilhetes tinha-os levado à fala, poderiam aprofundar o conhecimento mútuo durante a viagem, teriam cerca de três horas para essa tarefa, o resto viria naturalmente. Animada a, digamos, escritora olha por cima do ombro esquerdo para observar o jovem casal e analisar o avanço da relação. A deceção apoderou-se dela quando verificou que afinal os jovens apenas tinham trocado meia dúzia de palavras, provavelmente relativas à situação vivenciada por ambos, e de momento ignoravam-se completamente. Ele, com phones nos ouvidos, utilizava com atenção o telemóvel, ela, apenas prestava atenção ao livro que, entretanto, tinha tirado da mala e que lia sem dele desviar o olhar. Afinal, dali não resultaria nenhuma relação, tanto trabalho que o destino tinha tido para os juntar, o transtorno causado ao casal que acabou por embarcar no comboio com o bilhete errado e simplesmente ignoravam-se! Voltou-se para a frente e franziu a sobrancelha esquerda, o que fazia sempre que tentava engendrar a solução para algum problema. Não queriam falar e travar conhecimento agora, pensou, não fazia mal, afinal seria ela a escrever a história, era livre de lhes inventar o futuro que quisesse. Pois bem, então não falariam mais durante a viagem, mas a jovem seria uma brilhante aluna do 6.º ano da faculdade de medicina da universidade do Porto e o rapaz um jovem arquiteto, recém-licenciado, a trabalhar a tempo parcial num conceituado gabinete de arquitetura, também no Porto, tentando conciliar esta atividade com a banda em que tocava piano e da qual era manager. Teria, aliás, sido por essa razão que se tinha deslocado a Lisboa. Estava a ultimar a organização de uma série de concertos intimistas em várias salas e bares da capital.

Voltar-se-iam a encontrar no Porto, no hospital, após um trágico, mas não fatal, acidente de trabalho. Apesar de cumpridos todos os requisitos de higiene e segurança no trabalho na obra projetada pelo gabinete de arquitetura, em execução na Cedofeita, a verdade é que o acidente ocorreu. Há quem tenha dito que a inexperiência do arquiteto responsável nesse dia pelo acompanhamento da obra, o levou a cometer aquela inconsciência e irresponsabilidade. Há quem tenha dito que se tinha apercebido logo que o arquiteto não estava bem, devia estar pedrado, para ir para a obra com aqueles olhos e olheiras, não admira que o acidente tivesse ocorrido. Há ainda quem afirme a pés juntos que o rapaz foi empurrado.

Seja como for, teria de haver um acidente. Eles teriam de se voltar a encontrar e, sendo ela estudante do 6.º ano de medicina, o hospital seria um ótimo local de encontro. Ele fragilizado, mas nunca deixando de transmitir tranquilidade no seu olhar azul. Ela mais enérgica, pragmática, determinada em arranjar a melhor solução para os problemas que se lhe apresentam, como o daquele jovem que, junto com os colegas e médicos, tinha de sarar. A cara não lhe era estranha, apesar do grande hematoma. Deveria ser só aquela estranha e terrível sensação que tinha sempre que se abeirava da cama de um paciente. O medo de reconhecer o rosto de alguém querido, provocava quase sempre um falso reconhecimento do rosto do doente. Mas aqueles olhos, aquele olhar meigo e tranquilo, azul, já o tinha sentido antes.

A história poderia ser diferente, claro, para quê tanto dramatismo, para quê o acidente? Porque sacrificar o pobre rapaz precisamente quando tanto trabalho, dedicação e noites sem dormir, finalmente começavam a dar fruto? No gabinete gostavam dele, a sua sensibilidade e ousadia criavam espaços únicos de uma beleza incrivelmente melodiosa. Se não fosse a música, a banda, poderia até já estar a tempo inteiro no gabinete. Na verdade, apesar da singularidade sonora, também a banda estava a conseguir o seu lugar e começava a ser requisitada para eventos musicais e alguns concertos.

O reencontro seria bem mais bonito, e não tão dramático, se não acontecesse o acidente. Seria melhor o reencontro acontecer na véspera do dia do suposto acidente, num bar, perto da Ribeira, onde o jovem pianista tocava com a sua banda, já noite dentro. Ela desceria as escadas entrando no bar mal iluminado. Os risos provocados pela animada conversa com os amigos não lhe permitiram sentir logo a música. Apenas quando se sentou, numa mesa entretanto deixada disponível, a saborear um Sipsmith, o seu gin preferido, é que a conversa se distanciou e a música preencheu o espaço. Que melodia tão densa, mas tão libertadora. Fazia-a esquecer as desgraças que presenciava nas aulas práticas no hospital. Abstraiu-se dos amigos, que entretanto tinham recomeçado a conversa, do local onde se encontrava e distanciou-se de todas as preocupações, de todos os rostos em sofrimento, de todas as decisões difíceis que na sua profissão teria de assumir, de todas as más notícias que teria de dar a quem apenas queria ver nela o rosto da esperança. Embalada pela melodia terminou o seu gin e dirigiu-se ao piano. Sentia uma necessidade imensa de partilhar com a banda o bem que a sua música lhe estava a fazer. Reconheceram-se imediatamente. O resto da noite foi passado a conversar, entre bebidas e atuações. Os dados estavam finalmente lançados. Acabaria por ser a sua música a cativá-la e não a gentiliza e educação com que ele tinha gerido a questão dos bilhetes duplicados. O resto da história iria ser escrita por eles, dia-a-dia, cada dia.

Esta história seria bem mais bonita, no entanto, inverosímil. A rapariga, estudante responsável, nunca sairia até tarde, sabendo que no dia seguinte teria de estar no hospital. Teria de estar 100% concentrada e desperta para aprender e para ajudar. Já o rapaz, trabalhando a tempo parcial no gabinete de arquitetura, sabia que na manhã seguinte poderia repor as horas de sono em falta. Por isso a banda expressava livremente a sua arte até bastante tarde no bar onde tocava às quartas, quintas e fins de semana. O que o rapaz não contava, ninguém contava, é que na manhã seguinte o filho de um colaborador do gabinete tivesse uma indisposição súbita e imprevisível, ou até bastante previsível uma vez que na creche onde andava, já várias crianças tinham ficado em casa nos dias anteriores. Excecionalmente foi pedido ao rapaz que fosse substituir o colega. Teria de ir à obra de reabilitação de um edifício de 4 andares na Rua da Boavista. Alguns pormenores teriam de ser nessa manhã decididos em obra e era essencial a presença de alguém da equipa projetista, caso contrário seria quase certa a alteração, pelo empreiteiro, de algumas intenções de projeto. Apesar do sono e das poucas horas de descanso, disponibilizou-se a ir. Poderia ser uma boa oportunidade para defender aquela ideia inovadora que tinha tido em projeto, mas à qual o dono da obra torceu o nariz. Quando chegou já todos o esperavam e, apesar do sorridente bom dia, não conseguiu disfarçar o olhar vidrado de sono.

No hospital, os médicos, com toda a atenção dos estudantes, usaram os seus conhecimentos e perícia para lhe salvar e tratar a mão e braço esquerdos que tinham ficado bastante maltratados na queda. Felizmente, apesar dos hematomas, não tinha traumatismo craniano, o capacete tinha cumprido a sua função e o braço e mão acabaram também por amortecer o impacto da cabeça no pavimento de pedra. Na primeira visita após a cirurgia, a rapariga deixou-se ficar um pouco mais tempo, mesmo depois dos colegas terem saído. Abeirou-se dele e, com um sorriso sincero, perguntou-lhe como se sentia, se tinha dores, se precisava de alguma coisa. Ele olhou para a mão imobilizada em ligaduras e, ganhando a coragem que lhe tinha faltado perante o médico, com o seu olhar azul perguntou delicadamente com tinha ficado a mão…se ficaria inutilizada ou se recuperaria completamente. Ela arrepiou-se quando lhe reconheceu a voz, aquela voz musical, educada e delicada, naquele olhar azul. Sorriu de novo e respondeu com toda a tranquilidade que encontrou, apesar de se sentir perturbada, que ainda tinha um longo caminho pela frente, teria de fazer fisioterapia, mas que felizmente tinha tido a sorte de ter sido operado pela melhor equipa de cirurgiões do hospital. Estava em boas mãos. Ele olhou-a nos olhos e reconhecendo-a sorriu também, mas a preocupação com a mão logo lhe tirou o sorriso dos lábios e dos olhos. Notando-lhe o azul a escurecer ela apressou-se a acrescentar nervosa e despropositadamente – felizmente é a mão esquerda… O azul tornou-se negro. Não respondeu. Não disse que era pianista e canhoto, que gostava de desenhar, que precisava daquela mão, das duas mãos. Ficaram ali, frente a frente. Ele fragilizado e ela perdida entre o pragmatismo que sempre a acompanhava e a impotência e desconcerto que sentia no momento. Os segundos em que ficaram assim, frente a frente, sem dizer nada foram suficientes para que ela se recompusesse. Desculpe, disse. Foi despropositado. A operação correu muito bem, apesar de ter ainda um longo caminho de recuperação pela frente, acredito que vai recuperar completamente.  Desculpe mais uma vez… sim, recordo-me que é canhoto, independentemente disso nunca deveria ter feito aquele comentário. Agora ela sentia-se extremamente embaraçada, sentia a cara a ferver, sentia-se como uma criança apanhada em falta. Ele notou-lhe o nervosismo, o que lhe dava algum charme, e, suavizando o olhar, perguntou como é que sabia que ele era canhoto. No comboio, respondeu, reparei que por vezes pegava num caderninho e fazia uns rabiscos, pegava na caneta com a mão esquerda. Apesar da situação, talvez porque ainda estava sedado e não tinha dores, soltou uma gargalhada. Uns rabiscos! Ela desculpou-se novamente, corando ainda mais. Que gira que ficava corada e que sexy com a bata branca, pensou, e o azul iluminou-se. Quebrada a tensão inicial descontraíram os dois. Recomposta, explicou-lhe detalhadamente a anatomia da mão, os procedimentos efetuados, os que teriam ainda de ser feitos, todos os possíveis cenários futuros (ou pelo menos aqueles que a deontologia permitia que lhe dissesse), os cuidados que teria de ter e preparava-se para dissertar sobre os novos métodos de recuperação de tecidos e ossos quando a enfermeira entrou.

Já tinha passado uma hora e quarenta minutos de viagem quando foi anunciada a aproximação do comboio a Coimbra, onde faria uma paragem. A escritora levantou-se, vestiu o casaco e tirou a mala da bagageira por cima do seu lugar. A filha arrumou o caderno de desenho e o lápis na mochila e vestiu também o casaco, já era noite e deveria ter arrefecido. Olhou para trás, os jovens continuavam absortos nas suas atividades, sem se falarem. Ela continuava a ler o seu livro e ele fazia uns rabiscos num caderninho. Seriam desenhos? Ideias de projeto? Seriam notas musicais e o esboço de uma nova música? Não conseguiu perceber. Sairia em Coimbra e os jovens prosseguiriam viagem, até Aveiro talvez, ou Porto ou mesmo Braga, o término da viagem. Provavelmente não voltariam a trocar palavras e a história não passaria de um devaneio seu. Saiu com a filha, os dois jovens permaneceram no comboio, seguindo viagem. A rapariga, sentada à janela, levantou os olhos do livro enquanto o comboio reiniciava a marcha, olhou para fora e sorriu ao ver aquela menina que tinha acabado de sair do comboio e avançava na plataforma em direção à saída, de mão dada com a mãe. Recordou-se de quando era nova e também ela fez uma viagem de comboio com a sua mãe, nessa altura sentia que as viagens de comboio tinham sempre algo de místico. Na plataforma, mãe e filha, viram o comboio afastar-se em direção ao norte, até desaparecer num ponto de luz.

Passava da hora de jantar quando o comboio parou em Braga. O rapaz levantou-se e, delicada e educadamente, deu passagem à rapariga. Ela agradeceu corando ligeiramente. Durante a viagem tinha reparado que ocasionalmente ele fazia uns rabiscos num caderninho. Como era canhoto e ela estava à sua esquerda, não tinha conseguido perceber de que se tratava. A sua curiosidade tinha-a levado por diversas vezes a desviar o olhar das letras do seu livro e a espreitar para o que o rapaz fazia, mas sem que a mesma tivesse sido satisfeita, bem pelo contrário. A sua curiosidade ficou ainda mais aguçada quando ela reparou na cicatriz da mão que, com agilidade, manuseava a caneta. Nunca ficava indiferente perante uma cicatriz. Saíram juntos do comboio, ele atrás dela. Na plataforma pararam e ficaram por momentos frente a frente. Constrangidos sorriram, ambos envergonhados, e seguiram caminho lado a lado. Dirigiram-se para a praça de táxis e, chegando ao fim da fila, delicada e educadamente cederam o lugar um ao outro. Tanta cerimónia, tanto faça favor, depois de uma viagem inteira lado a lado, provocou neles um ataque de riso. Conversando, acabaram por perceber que iam para a mesma zona da cidade, podiam partilhar o táxi. Quando chegou a sua vez, entraram os dois para o banco de trás do táxi, conversariam melhor lado a lado. O táxi arrancou com os dois jovens deixando a estação para trás. O comboio permaneceu na linha, guardando os silêncios da viagem.

Equilíbrio




Transfiro o peso do corpo para o pé esquerdo descalço agarrando o chão. Cruzo a perna direita em volta da esquerda juntando as coxas, elevo os braços, aperto a barriga, contraio as nádegas, relaxo os ombros, concentro o olhar num ponto fixo e tento permanecer na posição, em equilíbrio. Os segundos passam, passam também minutos. Os ombros contraem-se, a barriga relaxa, o olhar distrai-se, os músculos doem, perde-se a postura, perde-se o equilíbrio. Relaxo, respiro fundo, descontraio os músculos doridos e volto ao início. Novamente na postura tento encontrar o verdadeiro equilíbrio, aquele ponto em que o corpo consegue permanecer na posição sem dor, imóvel. Desfoco o olhar e tento esvaziar a mente, concentrar-me apenas no corpo, na respiração. Tarefa árdua, a minha mente deve ser muito rebelde, por vontade própria põe-se a divagar, foge, os pensamentos surgem, interferem com a respiração, distraem-me. Perco novamente o equilíbrio, volto ao início e retomo a posição mais uma vez, as vezes que forem necessárias. Um dia hei-de conseguir encontrar o meu ponto de equilíbrio, um dia conseguirei permanecer na posição de equilíbrio na aula de Yoga.

Não é fácil atingir o equilíbrio, físico, mental e emocional e aí permanecer. As solicitações, as distrações e as mudanças constantes tornam essa tarefa um desafio permanente.

Em criança ansiamos ser adultos, quando nos tornamos adultos desejamos voltar a ter o tempo e a ausência de responsabilidades que tínhamos em criança. Desejamos ter alguém, desejamos liberdade, desejamos filhos, desejamos tempo, desejamos trabalho, desejamos descanso, desejamos dinheiro, desejamos amor, desejamos… e os nossos desejos são sempre contraditórios.

O equilíbrio físico, mental e emocional encontra-se por vezes quando conseguimos equilibrar nos pratos da balança situações, estados, sentimentos e acontecimentos completamente antagónicos. Se, por um lado, há quem apenas consiga o equilíbrio na sua vida andando sempre pela linha reta que lhe garanta manter o foco num objetivo bem definido, há quem, como eu, por outro lado, só consiga manter o equilíbrio vivendo a tocar os opostos.

Por essa mesma razão tento encontrar a felicidade entre o desejo e a realização, atingindo um equilíbrio. Mas a mente é rebelde, tem vontade própria, divaga, foge, quer mais, quer diferente, distrai-me e perco novamente o equilíbrio. O exercício de controlar a mente é muito mais difícil que o exercício de controlar o corpo, a mente não tem as barreiras nem os limites que o corpo tem. Felizmente! A mente quer-se livre porque é libertando-se que se supera e atinge grandeza. O exercício de controlo da mente não passará por a condicionar, por a limitar, mas por a deixar expandir-se infinitamente, libertando-se de fronteiras impostas e, em oposição, aprender também como canalizar o seu foco, centrando-se num único ponto finito, mínimo, dentro de nós.

Tenho conseguido atingir equilíbrio físico, mental e emocional alternando aulas de Yoga com aulas de Fight.

No Fight, esmurraço, pontapeio, dou joelhadas e cotoveladas e não paro de pular e saltitar, nunca permanecendo imóvel. O corpo explode em movimentos rápidos, libertando toda a energia. A mente voa, livre, não a contrario.

A serenidade, paz e interiorização do Yoga em equilíbrio com a dinâmica, explosão e exteriorização do Fight. As duas me libertam e as duas me renovam energias, complementam-se, completam-me.

A moldura




Acordou muito antes do despertador ter tocado. Era o seu primeiro dia no novo emprego e queria fazer boa figura arranjando-se com aprumo e chegando antes da hora. Além disso, o nervosismo despertara-a e não conseguia dormir mais. Tinha percorrido um longo e difícil caminho para conseguir aquele emprego: o concurso nacional, as provas, as entrevistas e os muitos e variados testes que avaliaram, não só a sua capacidade intelectual e os conhecimentos necessários ao desempenho da função, como o seu equilíbrio mental e harmonia emocional. Foram meses de espera, de deslocações, de estudo e de muitas orações a S. José, para que do alto intercedesse a seu favor e conseguisse o tal emprego. Bem sabia que o poder de S. José era insignificante relativamente à vantagem de ter alguns contactos junto da administração, mas na falta destes não estava em posição de menosprezar o poder divino. Quando recebeu a carta registada com a classificação do concurso e a informação que tinha sido a candidata vencedora, primeiro ficou eufórica, depois incrédula, por fim experimentou uma sensação de estranheza quando viu na classificação a lista com os candidatos desistentes. Bem, não seria isso que lhe iria estragar a alegria e o sentimento de triunfo que finalmente experimentava na sua vida.

Assim que chegou ao seu novo posto de trabalho constatou que afinal não era a única a chegar antes da hora, já algumas colegas ocupavam os seus lugares. Teria de confirmar o horário de trabalho, achava estranho tanta gente começar antes das 9:00 horas, não era isso que se dizia daquela instituição. Foi recebida com simpatia, apresentada a toda a equipa e encaminhada para a sala onde iria finalmente exercer a profissão para a qual dedicara tantos anos de estudo. Foi-lhe destinada uma secretária, perpendicular à minúscula janela, que não poderia abrir pois o ruído do trânsito da movimentada rua, causaria incómodo e perturbaria a concentração, um bloco de gavetas com fechadura onde poderia colocar o material de trabalho e os pertences pessoais, um armário alto, parte das prateleiras da parede e, claro, a cadeira de rodinhas com apoios de braços e de costas altas reguláveis.

Estava maravilhada, era tudo novo e tão diferente do seu antigo emprego como caixa de supermercado. Passados os primeiros 15 minutos de fascínio, sentada na cadeira que estava longe de ser nova, com o tecido castanho muito coçado e as rodinhas que de tão gastas já não deslizavam, observou o espaço em seu redor. Bolas, como era feio! Para além do amontoado de pastas e processos em cima dos armários, secretárias e chão, tendo apenas livre 1 m2 de chão para esticar as pernas, o mobiliário pseudo-vintage anos 80 em tons de cinzento, verde seco e castanho, era pavoroso. Por trás da sua secretária havia um painel de cortiça com alguns mapas e cópias de legislação, mas ainda com algum espaço livre. Bem, já que seria ali que passaria grande parte do seu dia, resolveu dar-lhe um toque pessoal e colocar alguns elementos que a alegrassem e lhe transmitissem bem-estar, o que com certeza aumentaria o rendimento do seu trabalho.

No dia seguinte, o seu segundo dia de trabalho, chegou já passava das 9:00 horas. Do saco de papel que tinha trazido de casa tirou fotografias, desenhos, um pequeno poster e uma moldura com uma foto sua com os filhos. No espaço livre no painel de cortiça foi colocando com rigor geométrico e equilíbrio estético, as fotos dos filhos na praia, no primeiro dia de aulas e no torneio de futebol, assim como alguns desenhos que os filhos lhe tinham dedicado e o poster. Aquela foto especial tirada no dia da mãe, em que aparece abraçada pelos filhos, colocada na moldura feita pelo mais novo na infantil, colocou em cima da secretária, num cantinho, à frente da pilha dos processos. Satisfeita pensou que afinal ali poderia ser feliz, só tinha de se abstrair do resto e alternar o foco entre o trabalho e aquelas fotos e desenhos que lhe proporcionavam uma sensação tão boa.

Ao terceiro dia começava a desconfiar da razão de tão elevado número de candidatos desistentes ao lugar que ela agora ocupava. Algo de muito estranho se passava naquela instituição. Era como se tivesse entrado num mundo paralelo onde o surreal naturalmente se tornava realidade e os comportamentos aberrantes de alguns elementos eram tidos como caraterísticas de comprovada competência, caso contrário como poderiam continuar a ocupar aqueles cargos?! Ela própria passou a ser cenário e testemunha de situações que já tinha ouvido, mas que nunca tinha acreditado fossem reais, tinha a convicção que eram fruto da imaginação e inveja alheia.

Ao quarto dia recebeu a instrução que teria de tirar as fotos e desenhos colocados no painel de cortiça por trás de si…assim como a moldura infantilizada e imprópria na dignificação do local de trabalho!

Não chegou a ouvir as razões plausíveis para tal decisão. A parede fica mais bonita e limpinha sem aquela papelada toda colorida, ponto. Não pode haver fotos e desenhos nas paredes, ponto. Elementos pessoais não podem ser exposto no local de trabalho, ponto. Humm, então é isso. Pensou que a febre da aplicação da nova lei de proteção de dados estava a ser levada ao ridículo, mas como era nova na instituição e o seu poder estava reduzido a zero, tirou as fotos, os desenhos e o poster do painel de cortiça, ficando novamente a superfície castanha à vista, lindíssima... Mas a moldura, a moldura que o seu mais novo tinha feito na infantil, na classe dos patinhos de bibe amarelo, com a foto especial tirada no dia da mãe, em que o abraço dos filhos a confortava cada vez que a observava, permaneceu em cima da secretária. Era o seu grito de rebeldia, a sua ligação à terra, a linha que a manteria à superfície, não a deixando submergir nas profundezas da lama em que a instituição afundava os seus funcionários. Colocou os phones nos ouvidos e ficou a ouvir o hit do momento: Shallow!

O armário




Fechou o armário onde guarda alguns processos, ninguém sabe exatamente que processos, se é que são processos. Rodou a chave, mas manteve-a na fechadura. Não se tratando da guarda de documentos ou objetos pessoais, o acesso ao interior do armário tem de se manter sempre e em qualquer situação disponível, mesmo na sua ausência. No entanto não se iria embora por uns dias de férias sem que deixasse salvaguardada a quase garantia de que ninguém o tentaria abrir. No caso de alguém, incauto, abrir o misterioso armário, na tentativa de aí procurar algum processo em falta, localizado em parte incerta, seria facilmente detetado e, no seu regresso, do que se esperava serem dias repousantes, a bronca seria grande… Já se imagina a gritaria, as acusações… adiante. Sorriu satisfeita e orgulhosa da sua própria inteligência, só uma mente rebuscada e com Q.I. muito acima da média se lembraria de tal mecanismo, tão simples, mas tão eficaz na dissuasão de qualquer intenção de abertura do armário. Ninguém lhe poderia apontar o dedo, ninguém a poderia acusar de negar o acesso aos processos, documentos e demais desconhecidos elementos guardados no armário, afinal a chave tinha ficado na fechadura!

Não é que alguém se interesse realmente pelo armário, igual a tantos outros, feio, metálico, cinzento, nem, tão pouco, pelo seu conteúdo. Aliás, nem pelo armário nem por aquele gabinete onde só se entra por força da obrigação e nunca sem antes respirar fundo e vestir a capa do seu ser mais zen. Eventualmente a falta de interesse poderá estar precisamente no desconhecimento do seu conteúdo. Sabe-se lá que indecifráveis, surpreendentes e talvez valiosos objetos possam estar secreta e religiosamente guardados dentro do armário, à espera que uma força superior surja das trevas e resolva os seus enigmas.

Quem já viu, quem teve a sorte, ou a ousadia, de olhar para dentro do armário, num qualquer raro momento da sua abertura, diz que é apenas um armário, igual a todos os outros, feio, cinzento e com prateleiras metálicas… sim, mas o que contém? Perguntamos a medo, com receio que só perante o ato de formular a pergunta possamos ser atingidos por um raio, um terramoto, pela lava de um vulcão, pelo próprio Urano chispando faíscas pelos olhos. O que contém? Pastas, processos, fotocópias, documentos vários, enfim, papelada, é isso, nada que brilhe, nada de códigos secretos, nada de documentos confidenciais, nada de capas com siglas de agências internacionais de espionagem…

O destino é matreiro e irónico e por essa mesma razão, precisamente nesses dias de ausência, foi necessário procurar um processo antigo, desaparecido, localizado em parte incerta. Foi tudo remexido, centenas de pastas e processos revirados e revistos e nem vestígios do desaparecido. Já quase tinham desistido de o encontrar quando alguém se lembra: o armário! O armário?! Perguntam a medo… Mas tens a certeza?! Sim, o armário, pode lá estar, ninguém sabe exatamente o que contém, esse pode estar lá.

Corajosa, assumindo o risco, dirigiu-se ao alto, feio, metálico e cinzento armário, igual a todos os outros. Naturalmente a chave estava na fechadura, seria só rodar e abrir as duas portas, num movimento pivotante, expondo o seu interior. Estica o braço e, quando a mão toca a chave, estaca, gélida. Pensa no que teria acontecido se tivesse aberto o armário, imagina a gritaria, as acusações. Respira fundo e solta uma gargalhada. Felizmente viu a tempo os dois bocadinhos de fita-cola com que as portas do armário tinham sido seladas!


Nota: esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência...

Consulta




Cheguei ao hospital trinta minutos antes da hora da consulta, fui de autocarro, de carro seria difícil, o trânsito dentro do recinto do hospital estava parado, a confusão de sempre. A escassez de estacionamento e a necessidade de transporte de muitos doentes até à entrada do edifício provocam o caos e o desespero de muitos, ao ponto de buzinarem, indiferentes à circunstância de estarem junto a um hospital. Entrei no piso -1, a zona dos elevadores estava cheia de gente, subi até ao piso 3 pelas escadas.

Após dar entrada no secretariado da consulta dirigi-me à sala de espera para aí aguardar a minha vez. Na realidade a sala de espera é um corredor onde colocaram 6 cadeiras brancas de plástico. Tendo em conta que me tinha sido atribuído o número 27, dá para perceber que muitos de nós tivemos de esperar de pé, encostados a uma parede. Ao lado, no hall de distribuição das várias alas em torno dos elevadores, um espaço ainda mais escuro e movimentado, há mais cadeiras, mas também essas estavam ocupadas. O espaço estava quente, tirei o casaco. Com a mala a tiracolo, o casaco e o chapéu-de-chuva presos num braço, peguei no livro, levo sempre um livro para as consultas, e arranjei uma posição minimamente confortável para ler, em pé, encostada à parede. Abri o livro na página marcada e reposicionei-me por baixo da lâmpada do corredor na esperança de conseguir melhor luminosidade. A luz amarela, embaçada, obrigava os olhos a um esforço doloroso para focar as letras que pareciam querer fugir daquele espaço escuro e feio e encontrar a luz límpida, oceânica, dos Açores, onde decorre a ação do livro. Paciência, teria de ler assim mesmo, os olhos acabariam por se adaptar, nem pensar passar duas horas a olhar para a parede ou para o telemóvel.

Para além da luz do espaço ser francamente má para quem pretende ocupar o tempo de espera a ler, todo o espaço é desagradável. As cores variam entre o verde desmaiado das paredes do corredor, em oposição ao castanho dos mosaicos das paredes do hall, o avermelhado do chão e aquela cor das guardas das paredes e do teto que não é creme, não chega a ser castanho, nem é ocre, é cor de leite com um pingo de café. Para me abstrair do espaço concentrei-me no livro e transportei-me até ao Faial, às suas praias de areia preta, vulcânica, ao Peter Café, à marina com as embarcações e os seu paredões com pinturas fantásticas e à imagem do Pico, imponente, rasgando as nuvens sobre o azul do mar. A brisa marítima não foi suficiente para suavizar o ambiente que permanecia quente e sobrelotado. Os que estávamos encostados à parede tínhamos constantemente de sair para deixar passar as macas que atravessavam o corredor. A leitura alternava com mudanças de posicionamento constantes o que ajudava a desentorpecer as pernas e a reagir à dormência dos braços. Levantava os olhos do livro e observava o movimento permanente no hall e corredor: médicos, enfermeiros e auxiliares atravessando os espaços, delegados de informação interpelando os médicos em passagem, doentes e familiares, macas, cadeiras de rodas…

Passadas cerca de duas horas o corredor ficou mais livre, o atendimento prioritário dos utentes em cadeira de rodas foi finalmente concluído e os restantes utentes foram rapidamente atendidos.  As cadeiras iam ficando disponíveis e o corredor livre. Sentei-me finalmente. Continuei a ler e, confortável e distraída, nem dei pelo passar do tempo. Fui chamada, seria a penúltima utente daquela manhã, já a hora do almoço ia avançada. Estava tudo bem e saí animada, descendo novamente pelas escadas até ao piso da saída, apesar de os elevadores estarem agora livres. Atravessei os jardins e corri para o autocarro. Com o estômago a gemer de fome agradeci a saúde e o sol brilhante no céu azul, faltava apenas o mar para que o dia pudesse ser perfeito! 

Sonhos




Há tempos perguntei à minha filha se se lembrava dos seus sonhos. Eu não sonho, respondeu, apenas me lembro dos pesadelos! Estranho, pensei, tanto a minha mãe como eu sempre fomos muito férteis no que diz respeito a sonhos. Alguns sonhos da minha mãe adquirem mesmo contornos premonitórios. Eu não chego a tanto, não tenho essa capacidade extrassensorial de transportar para os sonhos acontecimentos futuros ou presentes, mas considero que tenho um subconsciente riquíssimo, como suponho todos devemos ter, e uma imaginação que me permitem colocar em sonhos, dos quais me lembro depois de acordar, acontecimentos e imagens perfeitamente espetaculares.

Em jeito de brincadeira costumo catalogar os meus sonhos por categorias: os sonhos recorrentes, os normais de todos os dias e os extraordinários.

Os sonhos recorrentes são aqueles cujo tema surge com frequência nos meus sonhos. Nunca são iguais, mas o guião anda sempre à volta do mesmo assunto, mudando por vezes os cenários. Claro que a personagem principal sou sempre eu. Exemplo destes sonhos recorrentes são aqueles em que como bolos e chocolates sem parar, em que encontro dinheiro, em que preciso urgentemente de ir à casa de banho, mas onde as casas de banho nunca têm portas, sonhos em que voo ou corro sem sair do lugar e sonhos onde conduzo um carro sem travões e cujo volante não responde aos movimentos desesperados dos braços. Durante um determinado período, em que alguns colegas de trabalho andavam a tirar o curso de arquitetura, sonhei com alguma frequência que ainda estava a estudar e que nunca tinha os trabalhos de desenho e de projeto prontos a apresentar, enquanto dormia angustiava ao sentir que tinha os trabalhos por fazer e que seria impossível concluir as cadeiras com sucesso. Deixei de ter estes sonhos quando os meus colegas terminaram o curso. Quando estou doente ou muito preocupada sonho em círculos… os sonhos terminam e voltam ao início, sonhado repetidamente a mesma coisa a noite toda.

Os sonhos a que chamo normais, de todos os dias, adquirem os mais variados temas, cenários e personagens. Sonho com paisagens deslumbrantes, praias lindíssimas de mar azul cristalino, montanhas fabulosas e também com espaços arquitetónicos e cidades extraordinárias que gostava de projetar. Por vezes quando acordo destes sonhos fico a pensar na arquitetura que projeto no subconsciente e que consigo materializar em imagens sonhadas, mas que se tornam impossíveis de reproduzir na realidade. Se um dia conseguisse projetar e construir uma dessas obras sonhadas, ganharia certamente o prémio Pritzker! São sonhos onde surgem pessoas que conheço e pessoas que nunca conheci e que possivelmente nem existem, interagindo algumas vezes numa confusão e mistura de situações irreais com situações possíveis. Por vezes sonho com familiares que já faleceram e é de algum modo reconfortante sentir a sua presença. Alguns sonhos são muito coerentes e contam histórias engraçadas ou dramáticas, outros são completamente estapafúrdios sem sentido, desconexos. Uns transmitem desejo, alguns prazer, outros medo ou inquietação. São histórias soltas que por vezes se cruzam. São simples ou rebuscados sonhos, daqueles, de todos os dias.

De vez em quando sou brindada durante o sono com sonhos perfeitamente extraordinários. Alguns pelas mensagens que transmitem nas vivências sonhadas em imagens que recordarei sempre. Mensagens fortes, dramáticas, mas que recordo em alturas difíceis e me ajudam a ultrapassar o momento. Alguns dos sonhos extraordinários já não consigo reproduzir, mas após acordar tive a plena perceção que foram especiais. Um deles foi um autêntico filme, uma história coerente com princípio meio e fim, o que é raro num sonho. Lembro-me de outro em que sonhei repetidamente com a música que canta “você abusou…” e que na altura era a banda sonora de um anúncio publicitário a um medicamento para ajudar a digestão…quando acordei percebi o porquê do sonho: estava indisposta, com uma paragem de digestão. Já sonhei a preto e branco, algo excecional à regra de sonhar a cores. Num dos sonhos as imagens foram-me apresentadas em forma de película cinematográfica. Por vezes quando acordo fico espantada comigo própria e desgostosa com o facto de o meu conhecimento consciente não atingir o elevado nível intelectual do subconsciente, ao constatar que estive a sonhar em inglês ou em italiano, falando as línguas com desenvoltura e perfeição. Também já me aconteceu ter um sonho dentro de outro sonho, o que significa que atingi o topo da categoria dos sonhos, bem ao nível do filme Inseption – A origem!

O parque de estacionamento



Os carros perfilados nos lugares marcados a tinta branca no pavimento cinzento, exibem as suas marcas e modelos, variando as cores entre o preto e o cinzento, pontualmente o branco. A qualidade da frota hoje estacionada é consideravelmente superior à habitual, além disso já são poucos os lugares vagos e ainda estamos no início da manhã, o que significa que está a decorrer algum evento, um congresso possivelmente

Ouvem-se pneus a chiar, entrou mais uma viatura. Percorre todo o piso de acesso a uma velocidade superior à normal, como não há lugares vagos, acelera em direção ao piso superior, à cota do arruamento. Sobe a rampa. O piso ilumina-se com a luz dourada do sol nascente que atravessa os favos metálicos da fachada do edifício. Também este piso, normalmente vago, hoje está lotado. A viatura percorre todo o piso e sobe a rampa que dá acesso ao piso superior. Encontra alguns lugares ainda vagos e estaciona perpendicular ao percurso que circunda o 3.º piso de estacionamento. Aí ficará durante todo o dia, uma jornada de trabalho.

Quando não está lotado, o parque de estacionamento adquire caraterísticas espaciais que transcendem a sua simples e mundana funcionalidade. A vasta e ampla área de cada piso é pontuada pelo ritmo dos pilares que, quando iluminados pelo rasante sol nascente, criam um sugestivo jogo de luz e sombras. A natural escuridão do espaço dada pelo tom cinza dos seus elementos adquire então uma encorajadora tonalidade amarelada, luminosa apenas no pavimento, mantendo-se a zona junto ao teto na penumbra, que apetece percorrer. A escala do espaço, normalmente deserto, provoca um sentimento de poder, de posse e de satisfação que convida a rasgar as sombras a velocidade excessiva, percorrendo as retas entre pilares, ignorando as marcações dos lugares vagos no pavimento, até à curva feita com os pneus a chiar.

Quando não está lotado, o parque de estacionamento não é um parque de estacionamento, é uma pista de automobilismo, um submundo onde podemos ser heróis ou vilões, um castelo a conquistar ou um mar a navegar, é um espaço livre à nossa vontade e imaginação com todo o seu potencial atmosférico, vivencial e espacial.

Mas hoje o parque de estacionamento está lotado, não há espaço à imaginação, a devaneios. Hoje a missão é encontrar um lugar vago, estacionar e seguir a rotina diária. Quem sabe no regresso o parque já se encontre vazio e me possa imaginar a percorrer estradas e cidades num carro bem mais potente do que na realidade é, me possa imaginar senhora daquele mundo de luz e penumbra, heroína ou vilã, conforme me tenha corrido o dia.

Uma mão cheia de tangerinas





As tangerinas foram distribuídas pelos comensais que ocupavam todos os lugares da mesa, a mesa mais concorrida da cantina. O saco passou de mão em mão e cada um tirou a quantidade de tangerinas que desejava para finalizar o almoço. Porém, após a distribuição das tangerinas, surgiu em cima da mesa um saco cheio de laranjas. Também as laranjas foram distribuídas de acordo com o desejo de cada um. As que sobraram ficariam para os que viriam a seguir, ou para o dia seguinte. À medida que foram terminando a refeição e as tangerinas e laranjas começaram a ser descascadas o cheiro caraterístico e intenso da acidez da casca e do doce da fruta sobrepôs-se aos cheiros que enchiam o espaço. Os cheiros do prato do dia, dos fritos, dos grelhados e dos mais variados alimentos trazidos por alguns funcionários e aquecidos no micro-ondas, foram suplantados pelo doce e acre aroma das tangerinas e laranjas descascadas.

Apesar desta cena se passar numa cidade, muitas das pessoas que aí trabalham moram fora da cidade, em pequenos lugares, vilas ou aldeias. Pessoas que têm os seus terrenos, os seus quintais, as suas hortas, árvores de fruto e toda uma variedade de produtos que a terra oferece a quem lhe dedique algum tempo e trabalho. É comum ver nos corredores do meu serviço alguém com um saco cheio de produtos do seu quintal para distribuir pelos colegas. No inverno, para que não se desperdice a excelente produção de laranjas e tangerinas das árvores dos seus quintais, são levadas para a cantina e partilhadas com os colegas que lá almoçam. Os que moram em apartamentos agradecem a dose extra de deliciosa e suculenta vitamina C.

Esta partilha, este oferecer o produto da terra, faz parte do quotidiano de quem vive longe dos grandes centros urbanos. Nesta cidade de província tenho sido contemplada com generosas oferendas, para além das nutritivas tangerinas e laranjas que complementam o meu almoço, também já recebi limões, tomates cherry, folhas de lúcia-lima que fizeram muitos e deliciosos chás, e até cebolas, entre outros produtos.

Quando morei na aldeia, as ofertas eram ainda muito mais comuns e variadas. A partilha dos bens fazia parte da vida das pessoas, do seu dia-a-dia. Desde os produtos da horta, a queijos, ovos, carne e enchidos na época da matança do porco. Na falta de produtos para partilhar eu oferecia o meu sorriso, alguma conversa numa terra na altura tão desertificada e um muito sincero agradecimento.

Mas mesmo quando vivia em Lisboa, tinha por vezes o privilégio de receber em casa alguns produtos da terra. Tinha vizinhos que quando iam passar o fim de semana à terra, à aldeia, voltavam carregados de produtos que gentilmente partilhavam connosco.

Também agora quando volto à terra, à minha terra – Lisboa, regresso sempre muito mais carregada do que fui. São livros, bolachas, chocolates, mas os melhores produtos da terra, da minha terra, continuam a ser o coração cheio de amor, os bolinhos de coco da minha mãe e o doce de abóbora do meu pai!

Carta de amor




Amada,

Sinto a tua falta, sinto sempre a tua falta! As horas que passo longe de ti não são horas, são momentos intermináveis, de dolorosa ausência, ansiando o nosso reencontro. Sei que ainda guardas em ti a recordação da minha face, naquele último abraço quente e aconchegante antes de partir. Custa-me deixar-te. Todos os dias me custa, mas todos os dias tenho de o fazer, no entanto, aqueles últimos instantes, em que te aperto com mais força, com o desejo que o tempo pare e que possamos ficar assim, para sempre, esses instantes valem ouro, esses são só nossos, são únicos. Mas sabes que tenho de partir e compreendes, sabes que a minha vida não se limita aos nossos momentos, tenho responsabilidades…e também tenho outros prazeres, tens de o aceitar. Prazeres impossíveis de te incluir, desculpa. Mas sabes também que voltarei sempre para ti, como eu sei que estarás sempre à minha espera. Esta certeza anima-me, consola-me. Gosto de ti, bolas, gosto mesmo. Se conseguisses imaginar as vezes que penso em ti, que te desejo. Desconcentras-me os dias. Penso em ti e já não consigo trabalhar, fecho os olhos e imagino que estou contigo, finalmente. O nosso amor é único, é especial. É contigo que partilho as minhas tristezas, as minhas angústias. És tu que ouves os silêncios dos gritos sufocados nas minhas insónias. És tu que nos momentos de sofrimento e doença me dás o conforto possível, sem espalhafatos, sem exigências e sem queixumes pelas horas e horas em que estás lá, apenas e só para mim. És tu quem melhor me aconselha, quem me tranquiliza e revigora. Contigo sinto-me em paz! Sim, por muito difíceis que os dias sejam, quando finalmente te tenho junto a mim, sinto-me em paz! Contigo vivo os sonhos mais incríveis, aqueles que nem ouso contar em voz alta…mas, enfim, não são para contar, são nossos, só nossos. Agradeço-te todos os momentos e peço que me perdoes se nem sempre correspondi, se por vezes foste vítima de alguma violência e desleixo. Peço desculpa pelas horas que te deixei só, mesmo sabendo que me aguardavas. Mas não peço desculpa pelas lágrimas que sobre ti derramei, afinal foi essa a maior prova de amor!  Admito que o meu amor por ti é excessivo, é possessivo, é irracional, mas não consigo evitar. Quero-te de mais e quero-te só para mim. Quero ter só eu o privilégio de te sentir num abraço terno e forte. Não suporto quando outra pessoa está contigo, és minha, só minha. Logo, quando chegar, vou abraçar-te, vou sentir-te no meu rosto e finalmente estaremos juntas de novo.

Amo-te muito querida almofada.

Sempre tua,

Margarida


Texto publicado in “Três Quartos de um Amor, Volume II” da Chiado Books, Colectânea de cartas de amor, tomo II, página 203. Fevereiro 2019

A sopa da avó




Este fim de semana fiz a minha estreia num festival de sopas. Sou grande apreciadora de sopa e, tendo surgido a oportunidade de ajudar um grupo de jovens escuteiros a angariar dinheiro para uma atividade, optámos por dedicar o jantar de sábado às sopas. A característica de um festival de sopas é que por um preço fixo podemo-nos lambuzar com todas as sopas que quisermos e conseguirmos, é uma oportunidade para nos enchermos de comida sem culpas…isto se não nos limitarmos à sopa da pedra e afins.

Mal entrámos no salão fomos recebidos por um mar de gente, aparentemente seremos muitos a gostar de sopa, os suficientes para que em Portugal uma gigante cadeia de fast food tenha sopa no menu e que haja empresas de restauração que se dedicam quase exclusivamente à confeção e venda de sopa. Num balcão com cerca de 6 metros de comprimento estavam as várias panelas de tamanho industrial com as mais variadas sopas, devidamente catalogadas. O difícil seria mesmo conseguir chegar próximo e escolher perante tão variadas e deliciosas opções.

Passei a sopa da pedra, mas comecei logo à farta com uma substancial sopa de feijão, isto porque não reparei na sopa à lavrador, uma das minhas favoritas. A tacinha de barro ficou vazia num instante, estava deliciosa. Como não conseguiria comer de todas as sopas optei por experimentar as mais originais e que não constam dos meus habituais menus. Assim, segui para a sopa de almeirão que se carateriza pelo seu sabor amargo, mas que, apesar do seu baixo valor calórico, o que é sempre uma vantagem a considerar, é muito nutritivo e saudável. Continuei com uma apetitosa e bem condimentada sopa de peixe e pensei ficar-me por aqui, mas não resisti a provar também uma sopa de legumes de aspeto maravilhoso. Se o aspeto era bom o sabor foi ainda melhor. A sopa estava divinal, cremosa e equilibrada de legumes e sabia mesmo à sopa que a minha avó fazia. Tinha aquele sabor especial e caraterístico que guardamos nas memórias da nossa infância e que é atribuído exclusivamente às sopas das avós.

Por muito boas cozinheiras que as nossas mães sejam, a suas sopas nunca terão aquele lugar de destaque nas memórias gastronómicas que a sopa da avó tem. Seja porque associamos esses momentos de refeição a momentos de agradável convívio familiar com alguém muito querido, seja porque, não sendo diários, esses momentos automaticamente entram na categoria de preciosidade dos momentos especiais, seja porque efetivamente as mãos das avós, com a experiência aguçada ao longo dos anos, conseguem tornar a sopa um prato de excelência que proporciona elevado prazer gastronómico.

Pela mesma razão as sopas que faço não têm especial aceitação por parte dos meus filhos. Comem-nas com mais ou menos prazer, mas sempre com a resignação de quem aceita que precisa daquela dose de legumes diários. A grande vantagem da minha mãe é que também é avó e como tal a sua sopa de cenoura já ganhou um lugar especial nas memórias gastronómicas dos meus filhos, reservado às sopas das avós, lugar também garantido pela canja de galinha da minha sogra.

A sopa da avó mais do que o sabor e os nutrientes, transporta no seu caldo o amor com que foi feita, é como se comêssemos às colheradas uma boa dose de legumes recheados com sabedoria, compreensão, serenidade, cumplicidade e todo o amor que uma avó sente pelo neto.

Curiosamente, apesar de nitidamente ter sentido o sabor a sopa da avó, não consegui distinguir com precisão se tinha o paladar da sopa da minha avó materna ou da sopa da minha avó paterna, distintos um do outro. Senti o sabor das duas, diferentes, mas os dois estavam lá. Uma colherada evocava mais a minha avó materna, mas a colherada seguinte já me sugeria a minha avó paterna. Essa diferença e riqueza de sabores, tão extraordinariamente bem conjugados, proporcionaram que essa sopa tão deliciosa seja por mim considerada o expoente máximo da sopa da avó. Uma sopa que me fez evocar as minhas duas avós e sentir todo o carinho com que cozinhavam para nós, todo o amor que nos deram e todas as saudades que sinto.

Blue Monday




Levantei a cabeça e olhei para o grande vão da janela à minha frente. A imagem da lua, cheia e avermelhada, atravessou o vidro e refletiu-se nos meus olhos. Hipnotizada não deixei de a olhar, ali, brilhando sozinha na escuridão do firmamento, expondo-se, insinuando-se, provocando-me. De madrugada tinha-se eclipsado, mas neste momento apresentava-se com todo o seu brilho e esplendor. Permiti-me ficar por momentos a admirar o belíssimo e gigante corpo celeste na minha frente, a esfera de luz na superfície negra do vidro que começava a embaciar.

A temperatura na sala tinha subido consideravelmente, contrastando com o ar gélido da rua. Os movimentos dos corpos tinham criado uma atmosfera morna e algo empastelada em suor. A música que fora abafada pelos gemidos fazia-se de novo ouvir. Da sala ao lado ecoavam gritinhos de prazer e satisfação que se sobrepunham à música ritmada. A contemplação da lua, que me tinha deixado numa quase levitação, foi interrompida pela consciência do corpo, dos músculos duros e doridos da posição em que me encontrava e do cansaço acumulado nos últimos minutos.

A marca das minhas mãos ficou estampada no chão negro, carimbada com suor. Lembrei-me de Banksy e das impressões que vai deixando nos muros e paredes das cidades, mas esta pintura era minha. Olhei as manchas no chão. Duas manchas bem definidas, as palmas das mãos e dedos abertos, fazendo força contra o chão. De joelhos respirei fundo e recuperei o fôlego. O corpo cansado, quente e encharcado pedia descanso, mas ele queria mais, só mais uma vez, dizia, vá lá, só mais uma.

Apesar de ser considerado o dia mais triste do ano – blue Monday- até estava a correr bem e não iria agora deitar tudo a perder: cravei de novo as mãos no chão, sobre as marcas anteriormente deixadas. Os pés elevados recuaram com a subida dos joelhos e da cintura. Em posição de prancha fleti os braços e fiz novo conjunto de dez flexões, o último. Consegui, apesar das últimas terem sido um pouco aldrabadas. Soltei os pés do TRX e descansei, tinha terminado mais uma aula, só faltavam os alongamentos. O instrutor estava satisfeito e nós também, apesar de exaustos. Na sala ao lado continuava a aula de Zumba, com os seus gritinhos e música ritmada.

Ver com o coração




O portão verde metálico foi aberto por uma pequenina freira de sorriso rasgado e acentuada pronúncia castelhana. Entrámos no edifício com uma calorosa receção de boas vindas. A minha filha, Sofia, avançou decidida para a sala de convívio, conhecia bem o espaço. Deixei-me ficar para trás e, enquanto percorria o corredor, apenas pensava naquele cheiro desagradável, a casas velhas e a desinfetante, que senti assim que transpus a porta de entrada. Parei à entrada da sala de convívio. Encostada à ombreira da porta cumprimentei com um boa tarde, dirigido a todas e a ninguém. Obtive algumas respostas, sorrisos e olhares que se desviaram do ecrã da televisão e se cruzaram com o meu por instantes. A Sofia percorria a sala, distribuindo carinho a cada uma e conversando descontraidamente, com a sua inata capacidade de comunicar, mesmo com aqueles que aparentemente não comunicam.

Resisti ao impulso de ficar a olhar para a televisão e percorri a sala com o olhar. Os seus corpos retorcidos e incapazes repousavam em macas e em cadeiras adaptadas. Uma ou duas, poucas, cujos corpos foram poupados, sentavam-se em vulgares cadeiras de madeira ou ajudavam nas pequenas tarefas, transportando jarros de água antes de se sentarem a ver o programa transmitido pela televisão.

Os olhares vagos e vazios das doentes mais profundas não refletiam as imagens da televisão e não me aproximei o suficiente para vislumbrar neles a centelha de sonhos vividos num mundo interior e o brilho da alegria pela visita e ternura dos gestos e palavras que a minha filha lhes dirigiu. Aqueles gestos e palavras que não fui capaz de oferecer, se o tivesse feito sairiam estranhos, forçados, desajeitados, tão contrários à naturalidade e espontaneidade com que a Sofia os distribui. Gestos e palavras por ela presenteados, sem olhar aos corpos presos, inertes ou em espasmos, sem olhar à aparente incapacidade de dialogar, sem olhar às diferenças, mas olhando, vendo, muito para além das deformidades, das enfermidades. Na ausência, ela vê a presença, de uma vida, de um ser, de um como nós. Olhando com o coração ela vê o que eu não me proponho ver e atinge uma grandeza imensa que nos seus parcos 12 anos me fazem pequenina, mas grande de orgulho e de amor.

Alguns olhares são vivos, atentos e perspicazes, ávidos por absorver informação, ansiosos por comunicação, radiosos por atenção. Chamada, entro na sala e troco umas palavras com algumas das doentes. As frases são curtas, as minhas e as delas. As minhas porque não tenho palavras para mais, as delas…talvez porque a minha conversa desinteressante, de circunstância, não as estimule, ou talvez porque o esforço de articular as palavras de modo a que eu as entenda se torna penoso e frustrante, apesar da prontidão da Sofia a ajudar-me interpretar alguma sonoridade impercetível aos meus ouvidos duros e pouco habituados a ouvir para além do sentido das palavras.

A hora da merenda, a meio da tarde, já tinha passado e ainda faltava muito para o jantar. Desta vez a visita foi rápida, a minha filha não ficou para ajudar na refeição, como tantas vezes o fez quando, durante anos, nas férias de verão acompanhou a avó no seu voluntariado à casa das religiosas de acolhimento de deficientes profundas. A avó, com todo o seu amor e mãos experientes de enfermeira, ensinou-a a cuidar, a dar de comer, a pentear quem não o consegue fazer com as próprias mãos. Ensinou os gestos, mas a vontade, a capacidade de ver para além do que os olhos observam, já tinha florido. As duas, avó e neta, deram àquelas raparigas, algumas já de cabelos grisalhos, muito mais do que a refeição, do que os cabelos bem penteados, deram, e continuam a dar, um olhar, um sorriso, uma palavra, um gesto de carinho, momentos de alegria, vividos em conjunto, descontraidamente, sem obrigações, sem receios, sem complexos e sem tabus.

Chá, café...ou um copo de vinho tinto

  Ouvi o silvo da chaleira ao lume, a água fervia, o chá ficaria pronto num instante… Mas não tenho por costume fazer chá, nem oferecer ch...