A mala


O telemóvel toca, toca, mas não o consigo encontrar. Oiço o som, sinto o vibrar, mas não o encontro, embrenhado entre as tralhas que tenho na mala. Calou-se. Encontrei-o. É incrível o peso e a quantidade de coisas, uteis, que tenho na mala. Para os mais distraídos será apenas uma mala, pesada, mas a verdade é que é uma autêntica ferramenta multifunções, maior que um canivete suíço, ok, mas com muitas mais funções e utilidades. Vejamos: enquanto a manuseio e transporto exercito os músculos sem cair no ridículo de andar pela rua com um haltere; numa eventualidade de ser atacada, assaltada ou simplesmente tiver de usar da força e de alguma violência, tenho-a como arma de arremesso, porá o meu opositor se não inconsciente, pelo menos atordoado o suficiente para que me possa pôr a salvo; dentro da mala existe uma infinidade de coisas e objetos que, como mulher prevenida que sou, em alguma altura da minha existência, me serão muito úteis. A minha mala é muito mais recheada e surpreendente do que a mala do Sport Billy!
Houve uma altura da minha vida em que não precisava de mala, todos os objetos de que necessitava eram distribuídos pelos bolsos das calças e do blusão. Mas depois cresci, tornei-me uma mulher responsável e com responsabilidades, com marido e filhos… e todos sabemos que nas malas das senhoras também se guardam objetos úteis aos filhos, marido, namorado ou afim. Como é que um homem consegue sair de casa descontraidamente apenas em calções e t-shirt?! Porque sabe que na mala de alguém haverá lugar para as chaves de casa, para as chaves do carro, para a sua própria carteira, que não cabe nos bolsos dos calções, para o seu telemóvel e óculos de sol quando ficar de noite ou se tornarem dispensáveis…Porque sabe que se precisar, naquela mala haverá certamente um comprimido, mesmo que perdido e fora de prazo, para as dores de cabeça, naquela mala há, com toda a certeza, um ou vários pacotes de lenços de papel, uma caneta e um papel, que poderá bem ser de uma fatura ou conta por pagar, onde apontar qualquer informação pertinente e até uma pequena fita métrica para tirar medidas, porque nunca se sabe onde o destino nos leva e, vai-se a ver, dava mesmo jeito esta estante lá em casa ou aquela rede mosquiteira para as janelas, se tiver as dimensões desejadas.
No entanto a minha mala é neste momento uma sombra do que já foi, nos seus tempos áureos, quando os meus filhos eram pequenos, os objetos que albergava eram muitos mais e mais surpreendentes. O peso que deixam de transportar na barriga as jovens mães passam a transportar ao ombro, dentro da mala. Desde chuchas a brinquedos e pequenos livros com figurinhas, passando a toalhetes, fraldas de pano e descartáveis, babetes, supositórios, bolachas, água, até aos documentos, livro de vacinas e boletim médico, encontra-se sempre um objeto inusitado na mala de uma jovem mãe.
Admito que transporto muitos objetos que poderia dispensar considerando as tecnologias disponíveis mas, por preguiça, ainda não instalei no telemóvel o programa que me permite não andar com todos os cartões de supermercados, livrarias, lojas de brinquedos, que já deixei de usar, lojas de roupa, lojas de desporto, sapatarias, perfumarias, etc. Sei que disponho dessas funções todas no telefone mas, como pessoa do século passado que sou, ainda estou muito apegada à minha agenda em papel, que todos os anos recebo da UNICEF, e ao livrinho de endereços, daqueles com nomes de rua e números de porta para enviar cartas e postais a sério.
Seja como for, como é que eu poderia ter sempre acessível um saco de pano que se dobra sucessivamente até um tamanho incrivelmente pequeno e dá um jeitão quando temos de fazer uma compra de última hora, que é todos os dias, o creme de mãos, o batom hidratante, o corta unhas, um pequeno espelho, toalhetes refrescantes, os já referidos lenços de papel, produtos de higiene feminina que inesperadamente podem ser necessários e não convém nada sermos apanhadas desprevenidas, um livro de apontamentos, recordação que a minha querida irmã me trouxe de Itália, porque a qualquer momento posso ter um surto de inspiração, se não fosse na mala?

Mas de todos os objetos que se podem encontrar dentro da mala, talvez o mais inútil seja o pequeno cabide, para malas, daqueles que se encaixam numa mesa, de restaurante, por exemplo, permitindo deixar a dita cuja pendurada e evitando o tão desagradável e anti-higiénico colocar da mala no chão…inútil porque o pequeno cabide não aguenta o peso excessivo…

Comboio


Quinta-feira véspera de feriado. Avizinha-se o fim-de-semana prolongado, sente-se na cidade. A pressa de sair do trabalho, da escola, da confusão, de chegar ao refúgio de 3 dias de descanso, torna o trânsito caótico e os passeios apinhados de gente andando em todas as direções, uns a passo acelerado e outros já tranquilos, sem pressas, encaminhando-se para encontros e convívios, para o conforto do lar ou simplesmente usufruindo da cidade sem horário.

A noite de dezembro instalou-se gelada e, chegando à estação, procuro abrigo. O cais, exterior, entre linhas, iluminado com uma luz ténue, oferece apenas uma parca cobertura, entro então na sala de espera que me acolhe com um doce ambiente morno e agradavelmente iluminado. Sento-me, olho em volta e observo. A maioria são passageiros à espera que chegue o comboio que os levará aos seus destinos, quase todos jovens estudantes universitários. Voltam a casa de seus pais, onde saciarão as saudades da família, dos amigos, e de boas refeições; onde irão lavar a roupa e a alma da semana turbulenta na cidade universitária. Alguns, menos jovens, como eu, acompanham quem parte ou esperam quem deverá chegar. Poucos conversam, quase todos de telemóvel na mão. A voz feminina no altifalante avisa, a intervalos regulares, da passagem e chegada dos comboios nas várias linhas e dos atrasos registados. O comboio que aguardo está com 14 minutos de atraso…tanto melhor, tenho tempo para ler.

Tiro as luvas e abro o livro na página marcada.

O gotejar tinha som de poço e respingava para fora da gamela. À sua volta, o pedaço de chão alagado refletia com detalhe a janela e o lusco-fusco. O resto do átrio estava tão sombrio que ninguém conseguia condoer-se de ninguém. E, depois cheirava profundamente a gente. De vez em quando, havia um que tossia e aquilo pegava-se, uma gosma extenuada que enchia a sala húmida. Lá fora, o vento vergava o cais da estação e fazia torvelinhos com as folhas de choupo e os papéis velhos.”

Desvio o olhar do livro. O silêncio de conversas sussurradas envolve-me, quebrado apenas pontualmente pela voz feminina do altifalante. Olho os rostos divertidos de quem se entretém no telemóvel com conversas tecladas nos ecrãs. Ao meu lado duas jovens falam dos exames, estudantes de medicina pelo que percebi, planeiam os dias de pausa das aulas, o tempo de estudo e o tempo de diversão. À minha frente um senhor bem-posto, de sobretudo e luvas de pele, aguarda, sem bagagem, a chegada do comboio. A vida rola, tranquila e animada, penso. Baixo o olhar para o livro e recomeço a ler.

 “ (…) Os vagões já vinham cheios e, assim, quando os soldados correram as portas do comboio, o queixume alastrou por todo o cais. Os prisioneiros espremiam-se dentro das carruagens, olhando lá para fora e uivando ao nevoeiro, não fosse esconder algum guarda piedoso. Pediam água e havia quem erguesse acima da cabeça uma ou outra criança espavorida.”

Chega um comboio, ergo o olhar e através do vidro observo o cais. Há abraços e beijos. Despedidas e reencontros. Os que partem e os que chegam. O comboio que espero ainda demora. Continuo a ler.

“..... a palha encharcada em que se sentara, a sede dos outros que já era a sua sede, a fome, o frio e até o balde obsceno. Quando as portas se fecharam, confirmando mais uma paragem sem pão, houve quem desesperasse. Talvez voltassem a abrir, disparataram alguns, talvez ficassem ali, talvez os alimentassem. E por isso foi com as vísceras que escutaram o som irremediável que chegava dos carris. A princípio, o rodado renitente do comboio só lembrava o peso bruto, a cadência vagarosa do aço contra o aço, a pressa que hesitava e dava esperança aos condenados, como se a vontade deles ainda importasse alguma coisa. Mas, pior que a voz da máquina, só o estertor da carga humana: de novo as tosses, os escarros, os vagidos e as preces tolas. Quando deixaram a estação, nem todos se sentaram, mais valia a parvoíce com que olhavam para a porta aferrolhada.”

Engulo em seco. À minha volta tudo permanece tranquilo, ninguém se entristece, ninguém se comove, todos sorriem. Sou atravessada por um sentimento de desilusão e descrença, constatando desapontada a indiferença de todos ao sofrimento e desespero vividos naquele comboio… Não passará nesta estação.



Transcrições de “Os Loucos da Rua Mazur” de João Pinto Coelho.

Quero ser um livro!


Enquanto aguardava que terminasse o treino do meu filho ouvi, entre conversas de crianças, uma menina de 5 anos dizer que queria ser um livro. Não sei se a ideia de ser um livro foi fruto da sua imaginação e vontade ou se olhou para mim e, vendo-me a ler o maravilhoso “Os loucos da rua Mazur”, surgiu-lhe essa ideia.

Talvez tenha sido seduzida pelo meu sorriso e expressão de prazer ao ler os primeiros capítulos, ou, quem sabe, pela maneira como pouso com carinho o livro sobre as pernas e o seguro com ambas as mãos, inclinando-o suavemente. Talvez ao olhar para mim tenha sentido o desejo de ser valorizada, acarinhada e protegida como um livro, o certo é que uns instantes depois aninhou-se no colo de seu pai e aí procurou, e encontrou, amparo e carinho.

Quem sabe tenha reparado que enquanto a mão esquerda segura o livro com firmeza a mão direita vai percorrendo o livro em carícias lentas, página a página, passando uma após outra, no decorrer da história. Também no colo do seu pai sentiu o enlace firme e protetor de um braço enquanto a mão livre lhe afagava docemente os cabelos rebeldes.

Ou talvez a ideia tenha surgido da sua própria experiência de dias a folhear livros, a deliciar-se com as coloridas e sugestivas ilustrações, a inventar histórias e a tentar perceber o sentido das letras impressas nas páginas grossas, de histórias ouvidas à meia-luz, pela voz plácida e açucarada de sua mãe em inícios de noite, aconchegada entre lençóis.

Terá sido por saber que num livro cabem muitas histórias, aventuras, mundos e personagens, cabe conhecimento e distração, cabe arte e cabe ciência, cabe toda a nossa imaginação? Terá sido a possibilidade de ser tudo isso que a fez querer ser um livro?
Porque na inocência dos seus 5 anos tem já o conhecimento de que num livro tudo é possível. Um livro abre-se em páginas e páginas de infindas possibilidades, de histórias para serem contadas, assim como a extraordinária perspetiva que tem do seu futuro, anos e anos de enredos possíveis, de histórias para serem vividas.


Haverá algo mais belo do que a grandiosidade de uma criança de 5 anos querer ser um livro? A expetativa, o sonho, a alegria e a determinação de viver desta menina apresentam-se com a forma ilimitada de um livro. Quantos de nós já fechámos livros, muitas vezes por escrever, e os arrumámos numa qualquer prateleira da vida? 

" A célula adormecida" - opinião


Ler um livro é algo que me dá sempre muito prazer, se o livro for bom, para além do prazer que me dá, ainda me transporta para o seu mundo como se eu própria fosse personagem vivendo em tempo real as aventuras, desventuras, paixões, desilusões, frustrações, vitórias, medos e alegrias descritas. Mas se um livro for muito bom e lido na língua original em que foi escrito então o prazer imenso funde-se com o orgulho. Foram estes sentimentos que o livro “A Célula Adormecida” de Nuno Nepomuceno me proporcionou.

A Célula Adormecida 2ª ediçãoO livro, muito atual, cativa-nos da primeira à última palavra. Com capítulos pequenos apresenta-nos o enredo, a ação e a muita informação de forma serena, sem pressas, permitindo-nos ir absorvendo e assimilando todas as questões tratadas no decorrer da história, sem que com isso perca o ritmo da ação, que em crescente cadência no prende e nos estimula. Não sendo um livro ligeiro também não é massudo nem pesado, tem tudo no sítio certo, na altura certa, na dose certa.

“A Célula Adormecida” fala de política, de religião, de traição, de ódio e de amor, com muito amor, com muita humanidade. Curiosamente não senti qualquer raiva ou ódio pelos personagens com personalidades mais irritantes ou executantes de atos condenáveis, tal o amor e compaixão que o autor lhes/nos transmite. E o livro é isso mesmo, uma lição de amor, apesar de o ódio ser um sentimento constante ao longo de toda a narrativa.

A par de ler o livro na sua língua original, o português, o que considero sempre uma mais-valia, outra caraterística que me fez sentir mais próxima e dentro do livro foi o facto da ação se dividir entre a cosmopolita Istambul e a minha amada e saudosa Lisboa, nos seus percursos pela cidade.

Sendo um livro de ficção relata-nos factos e situações reais, o que torna toda a história muito mais emocionante e nos faz pensar profundamente na possibilidade da ficção se tornar realidade. Por outro lado, é uma obra que nos conduz à realidade de uma comunidade cada vez maior na/da nossa sociedade.

Esta obra fez-me recordar quando há mais de 25 anos fiz para a faculdade um trabalho de grupo sobre a mesquita de Lisboa. De uma forma muito mais distante e ligeira também nessa altura tivemos de perceber a cultura, a religião e a arquitetura islâmica para então compreender e caracterizar o edifício da mesquita. Mas o que recordo com mais carinho, o mesmo carinho que senti no livro, foi a simpatia e abertura com que fomos recebidos na mesquita. Apesar de sermos 1 rapaz e 3 raparigas de 20 anos, nunca senti qualquer pudor ou preconceito. O responsável que nos recebeu mostrou-se sempre muito prestável e até divertido, contando-nos histórias e curiosidades sobre o projeto e a construção da mesquita e permitiu-nos uma visita aos vários espaços do edifício, com exceção da sala de orações exclusivamente destinada a homens, onde apenas ao nosso colega rapaz foi permitido entrar… Como “castigo” pelo privilégio, por maioria (feminina) foi decidido que seria ele a apresentar oralmente essa parte do trabalho.

Por todas estas e muitas mais razões, que decerto encontrarão, “A Célula Adormecida” de Nuno Nepomuceno é um livro que recomendo vivamente.

A meia


Uma vez mais o meu maior temor aconteceu: perdi-me do meu par, da minha companheira, da minha mais-que-tudo, da minha cara-metade. Não me lembro em que momento a deixei de ver, se embrulhada por outras peças entre as voltas e reviravoltas encharcadas de espuma no carrocel da máquina de lavar, se ficou esquecida, escondida, perdida, em algum canto, recanto ou esconderijo da casa. O certo é que agora estou sem par e vou ser atirada sozinha para a gaveta onde vou ficar, por tempo indeterminado, aguardando um qualquer desfecho para a minha situação.
A culpa pode ser da minha dona que assim que entra em casa se descalça, libertando-se do nosso conforto, do nosso calor, da nossa opressão, largando-nos em qualquer lugar. Gosta de sentir nos pés nus a textura e temperatura do pavimento que pisa! Se a rapariga fosse metódica cairíamos juntinhas no cesto da roupa suja, mas tem um espírito livre, rebelde e deixa-nos em qualquer lugar, espalha-nos pela casa. Frequentemente ficamos esquecidas, ambas ou apenas uma de nós, separando-nos, debaixo da cama, dentro dos lençóis, embrulhadas e camufladas nas almofadas do sofá ou até mesmo dentro de uma das sapatilhas. E é assim ingrato, ao fim de um dia de reconhecida utilidade, palmilhando caminhos, correndo e pulando, somos dispensadas, esquecidas, desprezadas.
Também é possível que entre tantas meias iguais a diferença de tamanhos, 35, 37, 42 e 45 não tenha sido reconhecida e a minha companheira tenha sido erradamente emparelhada com outra. Já aconteceu antes. Irão permanecer juntinhas, embrulhadas ilicitamente até que alguém agarre nelas, lhes desate o abraço infiel, e as tente calçar. Desfeito o equívoco serão lançadas, cada uma, para a sua respetiva gaveta, sós. Se a sorte me bafejar a minha mais-que-tudo cairá ao meu lado, em cima de mim, na gaveta onde a aguardo, onde anseio o reencontro, o nosso abraço.
Enquanto aguardo, na gaveta escura, desarrumada e cheia, a minha sobrevivência dependerá da minha capacidade de permanecer no cimo do monte, por cima de todas as outras meias, bem à vista. Se a tragédia ocorrer, se com os movimentos escorregar até ao fundo, se alguma mão revolver o amontoado de meias na procura de algum par perdido, de algum padrão, cor, tamanho, textura ou temperatura específicas e por entre mexedelas passar para o fundo da gaveta, então não me restará outra sorte senão aguardar, na eternidade, o meu fim.

Resignadamente assumirei a minha sorte, aceitarei o meu destino sabendo que não estou só. No fundo da gaveta encontrarei outras meias, como eu, sós, perdidas do seu par, encontrarei também pares abraçados na velhice e no desuso, aguardando pacientemente o desfecho final. Contarei a minha história para quem a quiser ouvir; os caminhos que percorri, as aventuras que vivi, os jogos em que participei, os espaços e paisagens que conheci, os sentimentos que vivenciei num torcer de pés envergonhado e nervoso, as noites de inverno relaxadas, confortáveis e aquecidas, os dias quentes de verão transpirados nas sapatilhas…os cheiros. Mas a eternidade não será suficiente para ouvir todas as outras histórias que aquelas tristes meias, perdidas e esquecidas no fundo da gaveta, têm para contar.

Realizadores de imagens


Terminei de ler o livro, pousei-o na mesa e liguei o computador para fazer uma pesquisa ao site do autor e obter mais informações sobre ele e os títulos editados. Deparei-me logo com a informação que o livro que acabara de ler tem uma edição especial comemorativa do seu 25.º aniversário…25 anos, como é possível? O livro é tão atual! Bem, a história decorre há mais de 2000 anos, mas as imagens que fui criando à medida da leitura foram tão atuais, a definição da imagem e do som era de uma qualidade e nitidez impressionantes, os efeitos especiais e as cenas de ação tão realistas que era como se estivesse lá a presenciar e a viver os acontecimentos, até a banda sonora e o guarda-roupa denotavam as tendências contemporâneas, adaptadas à época a retratar, bem entendido.

A verdade é que se virmos um filme com 50 anos, por muito intemporal que a história seja, sentimos bem a sua idade, apercebemo-nos que a qualidade e definição da imagem já estão ultrapassadas, para não falar dos efeitos especiais e cenas de ação que no mínimo fazem-nos sorrir. Em contrapartida, podemos ler um livro escrito há 100 anos ou um livro acabado de publicar, mas fazemos sempre a conversão das letras para imagens atuais, nítidas e a cores. A reação a um livro lido pela primeira vez será sempre idêntica à de um filme acabado de estrear, com a grande vantagem que lendo o livro somos nós os realizadores das imagens criadas na nossa imaginação. Ler é dos melhores e mais acessíveis exercícios de estímulo à imaginação e à criatividade, a par de desenhar, esculpir e, claro está, escrever.

Por cada livro que leio é como se produzisse um filme que apenas eu consigo visualizar. Dependendo do livro, por vezes as imagens criadas, os locais e personagens, acompanham-me muito depois de ter finalizado a leitura e às vezes até tenho a ousadia de criar novos cenários e situações não descritas no livro, prolongando a vida das personagens. Por essa razão, pelo apego e relação que crio com os livros e suas personagens, quando termino a leitura de um livro não inicio logo a leitura de um novo. Dou sempre um tempo a que chamo de “luto” que será mais ou menos longo dependendo dos laços criados.

Quantos mais livros lemos mais abastada está a nossa memória com imagens por nós criadas. É uma infinidade de locais reais e imaginários, naturais e construídos, de situações, de objetos, de ações, de personagens, de trajes e até, bem lá no fundo da nossa consciência, de cheiros e bandas sonoras.


Tenho um primo que tem o sótão a transbordar de livros. Estão no sótão os livros que já não foram a tempo de ganhar um honroso lugar numa estante em qualquer uma das restantes divisões da casa. Entrar naquele sótão é como passar um portal mágico que nos leva para um mundo surpreendente de possibilidades ilimitadas de exercício à criatividade. Imagino o cérebro desse meu primo tão repleto de infindas e diversas imagens. Tão repleto que por vezes explode em devaneios súbitos. Felizmente que esse meu primo tem o dom de conseguir materializar os seus devaneios em forma de sentidos poemas. O meu primo é poeta!

Folha de papel em branco


Sento-me à secretária e olho para a folha de papel em branco. Passados alguns minutos continua em branco. Às vezes é difícil começar, parece que não sai nada de dentro de nós, nada que valha a pena transferir para o papel. Nem uma ideia, nem um conceito. Tudo em branco. Mas um papel em branco é já um princípio, é, pelo menos, um instrumento. Ok, são 2 instrumentos: o papel e o lápis ou caneta. Pronto, 3: o papel, o lápis e a mão. Pensando bem são 4 instrumentos: o papel, o lápis, a mão e a cabeça! E dentro da cabeça uma infinidade de pensamentos, ideias, conceitos, à espera de serem organizados, encaminhados, acrescentados e de se transformarem em linhas, pontos, manchas. Nesta folha de papel, ainda em branco, tudo, ou nada, pode acontecer.

No papel em branco podem começar a desenhar-se linhas. Linhas geométricas ou mais orgânicas que irão dar forma a espaços mentalmente visualizados. Linhas, pontos, manchas criando formas. Formas criando espaços. Espaços criando ambientes. Umas linhas inspirarão outras linhas e o pensamento fluirá. As linhas desenhadas irão transformar-se, aperfeiçoar-se, metamorfosear-se. Este papel em branco pode muito bem ser o início de uma grande obra, somente de uma obra ou pode simplesmente transformar-se em mais um papel riscado, amarrotado e lançado com pontaria ao cesto dos papéis.

No papel em branco podem começar a desenhar-se letras. Letras que formarão palavras que, juntando-se em frases, darão forma, sentido e conteúdo a ideias. Ideias que poderão transmitir sentimentos, recordações ou ideias que poderão fluir na criação de situações novas, imaginárias. Por certo também as letras e palavras inspirarão outras letras, outras palavras, também se transformarão e aperfeiçoarão. Este papel em branco pode muito bem ser o início de uma grande obra, apenas de um mero texto, ou pode também ser unicamente mais um papel escrevinhado, amarrotado e lançado sem pontaria para fora do cesto dos papéis.
A folha de papel vazia de traços, de linhas, de pontos, por vezes reflete uma alma cheia. Uma alma e uma mente cheias de ideias, de sonhos, de histórias, de vontades, à espera daquele momento singular, cósmico, em que tudo faz sentido e em que num turbilhão serão encaminhados para o papel e formalizados em linhas, pontos, letras. Ou simplesmente reflete uma alma e mente cheias de ideias, de sonhos, de histórias e de vontades esperando pacientemente que seja materializada a primeira linha, a linha a que se seguirão muitas outras linhas impulsionadas pela coragem do primeiro traço. A folha de papel em branco por vezes reflete também uma alma e mente cheias de vazios, procurando pontes, escadas, planos e linhas que os superem, que os combinem em elos coerentes com as ideias, os sonhos as histórias, porque sem os vazios, sem as ausências, sem os silêncios, as linhas, os pontos, as letras e as palavras não fazem sentido.


Por vezes, a mensagem do papel em branco pode ser tão intensa quanto o silêncio pode ser ensurdecedor.

A arte das musas


Não me canso de ouvir esta música, é linda, poderosa, profunda, eleva-me a outra dimensão. Quando a oiço sinto que ela se apodera de mim. Chega suave, de mansinho, aos ouvidos e depois, sofregamente, entra pela boca, pelo nariz, com a respiração, e desce, infiltra-se até ao mais profundo de mim. Revolve-me numa procura de algo que ainda não encontrei, de algo que se solte cá de dentro, cá bem do fundo. Revolve-me e preenche-me. Inspiro e expiro com mais dificuldade – todo o espaço concebido para ser destinado às trocas gasosas está preenchido pela música. Esta música é maravilhosa mas deixa-me exausta pelo esforço em respirar normalmente. Gosto de ouvir esta música e voltar a ouvir, uma e outra vez, com a repetição o esforço em respirar suaviza-se transformando-se em relaxamento, em descontração, em paz.
Há músicas que têm a capacidade de me alterar os sentidos, os sistemas corporais, o metabolismo, o estado de espírito. Há musicas que me emocionam, outras que me dão energia, ou nostalgia, há as que me alegram e as que me entristecem, as que me envolvem em sedução e as que me libertam em ritmos orgânicos, mais ou menos elegantes, mas sempre impulsionados pelas notas musicais. E há músicas que me causam repulsa.
Quando era adolescente passava horas sozinha, deitada no quarto a ouvir música, às escuras. Nada mais havia que me perturbasse, nenhuma luz, movimento ou imagem, era só eu e a música. Entrava num estado de quase hibernação, de relaxe total. Um dia de tão relaxada, tão descontraída, tão fora do meu corpo, quase a levitar, o coração pára, falha 1 ou 2 batimentos, 1 ou 2 segundos sem bater, o suficiente para me aperceber e me assustar. O susto fez-me sair do estado de graça em que me encontrava e fez o coração voltar a bater. Impressionou-me essa propriedade da música de me elevar a um estado de relaxamento tal que provoca a pausa cardíaca… é claro que o bloqueio cardíaco também terá tido alguma responsabilidade, mas as questões fisiológicas da anatomia humana são irrelevantes quando se trata de algo tão etéreo como a música.
O meu professor de fitness escolhe de forma sublime as músicas que acompanham os exercícios. Por vezes, quase no fim da aula, já de rastos e completamente exausta dou por mim como que ressuscitada, com uma energia vibrante, a pular, rodopiar e a movimentar-me ao ritmo da música, daquelas músicas com tanta pedalada que a sua potência se apodera do nosso corpo e nos faz mexer, dançar, pular. Por muito exausta que esteja há músicas a que é impossível não responder com movimento, com ritmo. Músicas que nos renovam e revigoram, como se a energia do nosso corpo se alimentasse de som! Se pudesse ser assim tão simples, se nos pudéssemos alimentar apenas de música…
A música é das artes que mais me surpreende, que mais me fascina e que mais admiro, talvez pelo facto de ser uma arte relativamente à qual sou completamente ignorante. Sou dura de ouvido, não tenho voz para cantar e não toco nenhum instrumento musical, para além de não me conseguir recordar de nada do que aprendi nas aulas de educação musical. Instruí os meus filhos que até ao 9º ano os poderia ajudar a qualquer das disciplinas escolares, das línguas às ciências, passando pela educação visual...a qualquer disciplina com exceção de educação musical! Admiro a pintura, o desenho e a escultura, dá-me um enorme prazer contemplar, mas a cima de tudo viver a arquitetura (…se a pudéssemos viver sempre no nosso dia a dia!), adoro a dança, o teatro, o cinema. Mas estas são artes que eu compreendo, conheço a sua essência, que de algum modo me estão ao alcance de executar. A música não, eu seria incapaz de agrupar sons, notas, ritmos ao longo de um tempo e formar uma música, uma música que fosse minimamente digna de ser considerada arte, uma música que conseguisse despertar algum sentimento e sensação que não fosse o de repulsa e sofrimento, que não fosse apenas ruído. Admiro como se conseguem agregar todos os ingredientes que compõem uma música e ser original, criar sons e ritmos tão diferentes, que nos consigam elevar a estados que sem o transporte musical dificilmente conseguiríamos atingir.

Mudou a música e oiço agora uma que me transporta para o passado, para momentos vividos, para boas recordações…vou-me deixar levar e com esta banda sonoro reviver um dos melhores filmes da minha vida.

Irmãos


Recordo-me de em menina, com 3 ou 4 anos, estar sentada com a minha mãe na sua cama a conversar. A sua barriga de grávida, redondinha e proeminente, fazia-me ansiar pelo nascimento do meu irmão. Conversávamos sobre os nomes a escolher para o bebé, lembro-me que eu queria que tivesse 3 nomes próprios: os nomes dos meus 3 primos mais velhos… primos de coração. Acabou por ficar apenas com 2, mas ainda hoje recordo com carinho o nome Luís Miguel André! O meu irmão foi o primeiro bebé que tenho memória de ter sentido ainda antes de nascer. Pousava a mãozita na barriga da minha mãe e juntas sentíamos os movimentos e pontapés do bebé. Lembro-me perfeitamente do dia em que o meu irmão nasceu, tinha eu 4 anos. Recordo-me de estar a subir uma escada a caminho do berçário na maternidade, de mãos dadas com o meu pai e a minha irmã mais velha; tinha finalmente chegado o dia de conhecer o mano bebé! Com pavor olhei pelo vidro do berçário e vi uma sala cheia de recém-nascidos. Naquele tempo quando os bebés nasciam não ficavam logo junto às mães. O meu pai apontou para um deles e apresentou-nos o nosso irmão, mas, na inocência dos meus 4 anos, receei que pudesse não ser aquele bebé o meu irmão, mas qualquer um dos outros mais de 10 recém- nascidos, afinal eram todos iguais!
O meu irmão foi crescendo e os beijinhos e abraços com que eu e a minha irmã o enchíamos foram dando lugar a pequenas zangas e ao afastamento caraterístico de miúdas adolescentes relativamente ao irmãozinho ainda criança. Apesar das diferenças, a relação entre os 3 irmãos cresceu em harmonia, cumplicidade e amor, muito graças à maneira como os nossos pais souberam lidar e educar 3 crianças tão naturalmente diferentes e como sempre nos ensinaram a partilhar e a dividir por 3… por 4 ou 5, por quem necessitasse!
Ao longo da vida fui colecionando momentos especiais com os meus irmãos e ainda hoje, a viver a 200km de distância, fazemos questão de aumentar a coleção! Se a minha irmã é a única pessoa que sabe tudo da minha vida, tenho com o meu irmão uma cumplicidade diferente mas tão entranhada que quando jogamos como equipa ao “pictionary” ninguém nos consegue vencer, tão em sintonia estão as nossas mentes!
Com os meus irmãos cresci e partilhei muito mais do que um teto e refeições à mesma mesa. Partilhei o amor e a atenção dos nossos pais, partilhei férias e momentos do dia-a-dia, aventuras e desventuras, gargalhadas e lágrimas, segredos e denúncias, direitos e deveres, conhecimentos e brincadeiras, zangas e abraços, mas também partilhei espaços, roupas, livros e brinquedos, refeições e guloseimas. Com os meus irmãos aprendi que dividir por três pode dar sempre resto zero! Com eles partilho o que de mais valioso temos: o amor dos nossos pais! Partilhamos também o mesmo grupo sanguíneo, mas acima de tudo partilhamos a Vida.

Que este sentido de verdadeira união entre irmãos, partilhado agora também com os meus filhos, seja para eles exemplo da riqueza e do privilégio de se terem um ao outro.

O elevador


Vieram hoje os senhores da manutenção, finalmente. Estou operacional de novo, após ter estado três dias parado. Três dias que pareceram uma eternidade e que causaram grande transtorno, bem sei. Eu ouvia os desabafos no sobe e desce aqui ao lado, os queixumes de quem não quer fazer o esforço hercúleo de subir dois lanços de escada. Não compreendo, o meu colega é perfeitamente competente, não teve descanso nestes três dias, não negou nenhuma viagem. Bem sei que a sua lotação é menor e as suas dimensões não permitem a viagem do senhor do 3.º direito, para isso existo eu. No entanto, a minha paragem forçada também teve aspetos positivos, eles não se aperceberam, mas eu bem vi que a rapariga do 2.º esquerdo, que adia indeterminadamente a mudança do seu estilo de vida, finalmente utilizou as escadas. E as manhãs silenciosas, de olhares no chão, deram lugar a conversas de ocasião, a trocas de sorrisos, a “bons dias” generosos. Eu estive preocupado, a sério que estive, a minha missão esteve em risco: como faria o senhor do 3.º direito para se deslocar entre o automóvel, no estacionamento na cave, e o terceiro andar? Mais uma vez tenho de admitir, os humanos surpreenderam-me, superaram as minhas fracas espectativas: coordenaram-se na ajuda ao vizinho e com astúcia, imaginação e boa vontade transformaram em acessível o meu pequeno colega do lado. É claro que isso os obrigou a conversar, o que foi estranho de início, a combinar disponibilidades, a estarem presentes.
Mas hoje já estou operacional. Voltam os silêncios matinais, quebrados apenas pela energia estonteante dos gémeos do 5.º frente que, independentemente da hora do dia, pulam, falam, cantam, gritam e por vezes choram, sempre em coro, os dois. Eu bem vejo o olhar cansado daquela mãe, o seu sorriso ternurento não consegue disfarçar o estado de exaustão espelhado nas olheiras profundas. Voltam os “bons dias” envergonhados e inaudíveis, os olhares distantes, focados no infinito, nos planos para mais um dia ou nos sonhos que talvez realizem. Volta o cheiro a champô, a after-shave e a perfume.
Hoje volta o senhor do 3.º direito, independente, sempre alegre e positivo. O acidente não lhe tirou o gosto pela vida, pela aventura, deu-lhe antes um brilho diferente no olhar. Nunca deixa de cumprimentar quem encontra, de meter conversa, de seduzir. E como ele seduz! Se eu reproduzisse as meias conversas que já lhe ouvi, as conversas inteiras, as insinuações e os olhares. Confesso que tem charme o homem, mas mais do que isso, espalha amor pela vida e tem um brilho especial no olhar ao qual ninguém consegue ficar indiferente.
Voltam os fins de tarde movimentados. O atirar com as mochilas pesadas para o chão, o peso adicional das compras, as conversas ao telemóvel, o contar entusiasmado, deprimido ou enraivecido como correu o dia de trabalho, de escola, de procura de emprego, as trocas de olhares e os segredos rápidos, entre pisos. Volta o sobe e desce atarefado, para comprar, na mercearia do bairro, um artigo de última hora, para ir passear o cão ao jardim, ir ao ginásio, levar os miúdos ao futebol, música ou outra das milhentas atividades que os tornarão adultos mais completos, levar o lixo ou o saco da reciclagem ao respetivo contentor, ir à rua aproveitar os últimos raios de sol. Volta o cheiro a suor, a lixo e a comida de take-away.

Alguém carregou no botão, alguém me chamou, não é normal a esta hora do dia. São estes os momentos que mais aprecio, que mais me divertem. Naquelas horas em que o silêncio é quase absoluto e em que os meus utilizadores estão sozinhos ou em encontros furtuitos. Sou testemunha de desabafos, confidências e de enredos de enganos, mentiras e traições. Fui testemunha de muitas conquistas, algumas zangas e outras tantas reconciliações… Já testemunhei em primeira mão a notícia de um nascimento mas também a notícia de um falecimento. Já levei murros e pontapés e já senti os corpos languidos encostando-se a mim, até já fui beijado. Abre-se a porta. É um estranho, não mora aqui, nunca o vi antes. Vem sorridente, é sempre bom sinal. Tira o telemóvel do bolso, posiciona-se de frente para o espelho e tira uma foto, uma selfie diz-se. É sempre um orgulho, eu também consigo ser muito fotogénico.

Fruta que sabe a sol


Em Portugal a fruta é deliciosa, sabe a sol, dizia-me uma amiga belga numa das suas várias visitas ao nosso país. Nunca tinha pensado no sabor da fruta nesses termos, mas adorei e pensando bem ela tem toda a razão. Temos tendência a não valorizar o que havemos como garantido e em Portugal o sol é garantido, já na Bélgica…

Graças ao grau de maturação proporcionado pelas muitas horas de sol, a fruta em Portugal tem um gosto muito especial e autêntico. Quem não tem o privilégio de a poder saborear diariamente sente bem o seu gosto especial e aprecia a nossa fruta quando tem o prazer de o fazer.

Apesar de termos fruta durante todo o ano é na primavera e verão que há mais variedade e em que ela sabe melhor, que sabe realmente a sol. E fruta a saber a sol é: no fim da primavera trincar um pêssego perfumado e suculento e o seu sumo escorrer pela boca e pelas mãos e ficarmos peganhentos de lamber as mãos antes de as lavarmos; é colocar de uma só vez na boca 5 ou 6 cerejas carnudas e negras e ir cuspindo os caroços e repetir o gesto uma e outra vez até acabar todas as cerejas do cesto e ficarmos com a língua preta; é nas férias de verão levar uma caixa com cubinhos de melão fresco para a praia e sentir a sua doçura salpicada por gotinhas salgadas de mar; é comer melancia num terraço ao pôr-do-sol; é devorar uma mão cheia de ameixas sumarentas e ter esperança que não faça mal; é sentir o aroma a maçãs verdes no pomar, apanhar uma, trincar e sentir o suco agridoce libertar-se da polpa crocante; é no fim do verão debicar uvas redondinhas, de vários tamanhos, de um cacho grande e negro, uvas de polpa suave e doce; é deixar-se envolver pelo morno, adocicado e seco perfume das figueiras e ficar de lábios colados enquanto o fruto se desfaz na boca e se absorve todo o seu açúcar; é também brindar com amigos ao fim do verão e comer as amoras e framboesas embebidas na sangria.

A minha amiga belga não chegou a verbalizar, mas vi na sua expressão de prazer deleitando-se com a salada que acompanhava o churrasco, que não é só a fruta que sabe a sol em Portugal. Também o manjericão, os coentros, orégãos, a hortelã, a alface e o tomate (na realidade o tomate é fruta), sabem a sol. Se juntarmos todos estes elementos numa salada, a que adicionamos cebola finamente cortada, temperada com sal marinho, azeite virgem e vinagre balsâmico e se a enriquecermos com bocadinhos de queijo fresco de cabra alimentada nos campos, conseguimos sentir o sabor dos raios de sol que pela manhã acariciam as plantas e as despertam da noite fresca, dos raios de sol escaldante do meio-dia que as enchem de vida e de energia e dos raios de sol que na serenidade preguiçosa do entardecer lhes prolongam a cor e o paladar.

E o vinho? Achará a minha amiga que o vinho em Portugal sabe a sol? Desconfio que sim, mas não me chegou a dizer…adormeceu.

Receita...


Coloco vários cubos de gelo no copo largo de pé. Faço um movimento circular permitindo que toda a superfície de vidro arrefeça em contacto com o gelo. No fogão, o tacho de barro já tem cebola e alho a estrugir numa generosa dose de azeite. São adicionados alguns raminhos de coentros e uma folha de louro, sentindo-se de imediato o seu aroma. Corto uma lâmina de casca de lima e dobro-a para que os pequenos poros da pele rebentem e libertem toda a essência que será transferida para a superfície interior do copo. Sirvo uma dose de gin e uma de água tónica, de boa qualidade. Acrescento algumas bagas de zimbro e fios de casca de lima - o aroma que emana do copo é fresco e com um toque de acidez. Distraí-me na preparação do gin e mais uma vez não vi qual o ingrediente misterioso usado na confeção do divinal arroz de marisco que ele teima em não me revelar. Tanto melhor, será sempre ele o chefe responsável pela sua confeção. A mim irá saber-me maravilhosamente. A sua fragrância deliciosa já alastrou a toda a casa, está em bom andamento. O vinho verde repousa no frio, será servido bem gelado com o prato principal.
Enquanto finaliza o arroz de marisco bebe o gin tónico que preparei. Entre ingredientes e mexedelas aproveito para bebericar também, ficou delicioso. Foram entretanto preparados outros aperitivos para acompanhar os petiscos que já estão sobre a mesa: queijo creme envolvido em mel, morcela e farinheira grelhadas e ainda queijo do Rabaçal. No centro da mesa há um cesto com tostas, broa de milho e pão fatiado. Para finalizar a refeição há melão casca de carvalho, mas tenho dúvidas que no fim alguém tenha estomago para ele.
A refeição decorreu animada e prolongou-se noite dentro. Várias garrafas de vinho foram abertas e consumidas. No final não sobrou nada do melão que se revelou uma solução acertada, para além de extremamente saborosa. A noite foi quente, de ânimos e de temperatura e o melão fresco ajudou a refrear e a refrescar, mantendo a boa disposição entre amigos.
Estas jantaradas de fim-de-semana têm a capacidade de renovar energias, de alimentar amizades, de fazer esquecer os descontentamentos do dia-a-dia, de celebrar a vida e de partilhar sabores. O convívio entre amigos quando é feito à volta de uma mesa, partilhando refeições, fortalece as raízes que sustentam essa mesma amizade. O mesmo alimento que sacia o corpo alimenta a amizade, revigorando-a.
Somos mestres na arte de alimentar laços e desconfio que não é apenas pelo simples prazer do paladar que a nossa gastronomia é tão rica, variada e saborosa, mas pela importância que lhe reconhecemos nas relações humanas.

Podemos partilhar refeições frequentemente com o mesmo grupo de amigos mas os repastos serão sempre diferentes, haverá sempre um prato novo a experimentar, a apurar, uma inovação que se quer apresentar… e as refeições serão sempre prolongadas, acompanhadas com um bom vinho para soltar as emoções retraídas do quotidiano. A variedade e diversidade das refeições em família é uma meta que tentamos atingir. Apesar da falta de tempo caraterística da nossa vida ocupada, faz-se um esforço para que o momento seja agradável e harmonioso, ao paladar e ao convívio, com experiências gastronómicas, introdução de novos alimentos aos membros mais novos da família e a oportunidade de proporcionar conversas despreocupadas. Na altura mais feliz da minha vida profissional, com um ambiente irrepetível entre colegas e chefe, pela amizade, respeito, colaboração, apoio e dinâmica de trabalho, a equipa, estimulada pelo líder, fazia reuniões de trabalho em almoços que se prolongavam pela tarde. Nunca foi tempo de trabalho desperdiçado, bem pelo contrário, as reuniões à volta da mesa de refeição foram sempre muito produtivas e isso refletia-se na execução das nossas tarefas. Houvesse mais chefes e patrões a perceber estas dinâmicas e decerto a produtividade do país aumentava!

Cheira bem, cheira a...


Hoje o jantar vai ser massada de peixe. Já se sente o aroma que o cherne e o tamboril libertam ao serem envolvidos pelo refogado de cebola e alho, aromatizado com uma folha de louro do quintal dos meus avós, a que se juntou uma generosa pernada de coentros. Algum dos meus vizinhos vai jantar frango guisado com esparguete, para outros o jantar será bife com molho de manteiga e cerveja: sente-se o característico aroma a manteiga derretida com uma cabeça de alho a que se adicionou uma porção de cerveja e que numa envolvência de sabores e texturas criam o delicioso molho. Noutro apartamento há sardinhada, talvez tenham visitas, o intenso cheiro a pimento assado na brasa dá agora lugar ao forte odor a sardinha assada que se sobrepõe a todos os outros cheiros e aromas que a brisa de fim de tarde transporta até nós.

Uma das particularidades e maravilhas de Portugal é o seu cheiro, ou cheiros. São os cheiros que se sentem e se distinguem conforme a zona, a hora do dia ou a refeição a ser confecionada. É o cheiro a maresia no litoral, o cheiro a lareira nas noites frias de inverno, o cheiro dos pinheiros, a ervas aromáticas, a flores ou a relva acabada de cortar. É o cheiro a bolos pela manhã quando percorro as ruas da baixa de Coimbra. O irresistível aroma a pão acabado de sair do forno. Aquele cheiro inconfundível dos carris da linha de comboio, que lembra férias e aventuras. O cheiro ainda morno, adocicado e envolvente do outono. O cheiro a protetor solar no verão e o cheiro a cerveja e a ressaca na semana da queima das fitas…

Há cheiros e sabores em Portugal que conseguem concentrar em si toda a essência de uma estação do ano, de um local ou de um acontecimento. As castanhas assadas encerram todo o aroma do outono: o fumo da lareira e brasas onde são assadas, o cheiro adocicado que se vai libertando ao serem assadas e depois na boca o quente, suave, doce e encorpado sabor da castanha a pedir um copo de jeropiga. O cheiro fresco e salgado a maré baixa numa praia com rochas, com toda a imensidão de vida que se descobre à medida que o nível do mar baixa, o cheiro a mar, a limos e algas, a crustáceos e moluscos, a anémonas, a ouriços e a estrelas-do-mar, encontra o seu expoente nos percebes, aqueles crustáceos em forma de Alien, que para além de cheirarem, também sabem a maré baixa.

Mas, para além dos sugestivos cheiros, aromas e odores, o que acho realmente fascinante é que só pelo cheiro conseguimos saber exatamente o que está a ser cozinhado. A riqueza da nossa gastronomia produz uma variedade imensa de cheiros distintos e únicos, perfeitamente identificáveis. Os cheiros chegam até nós através de chaminés, portas e janelas abertas. São cheiros que se libertam de casas particulares, de restaurantes, cafés ou cantinas. São cheiros que vagueiam pelas ruas e ruelas, são cheiros que entram sorrateiramente em nossas casas e escritórios, são cheiros que nos fazem querer tocar à campainha dos vizinhos e ficar à espera de sermos convidados para a refeição…


E nós, portugueses, gostamos tanto do cheiro a alimentos que até fazemos livros com cheiro a algo comestível, literalmente! Quem, como eu, já se deliciou a ler os livros com cheiro a baunilha, banana, morango, chocolate, canela e caramelo?!

Um tesouro chamado livro


Uma das memórias de infância que recordo com um misto de carinho e orgulho é de ver frequentemente o meu pai com um livro na mão. Lá em casa sempre houve muitos livros. Não apenas livros alinhados em estantes, mas também livros pousados, entre leituras, nas mesinhas de cabeceira, no móvel do átrio de entrada, junto ao sofá…Mas é na mão do meu pai que as memórias dos livros me tocam com mais intensidade.

O meu pai aproveitava o longo percurso para o emprego em transportes públicos para ler. Suponho que também lesse na pausa do almoço, mas isso numa altura em que ainda não utilizava esse tempo de pausa no emprego para correr à beira rio… Há 40 anos ainda não se falava em trail nem em runners. Para proteger os livros das andanças diárias forrava-os com uma qualquer folha de papel usado, a reutilização do papel era um ponto de honra lá e casa, muito antes da palavra reciclar fazer parte do nosso vocabulário, por isso eu nunca sabia exatamente que livro andava a ler. Via-os na sua mão quando saíamos de manhã e nos acompanhava à escola, de autocarro. Sabia que depois de nos deixar na escola, apanharia mais 1 ou 2 autocarros e nessa altura ocuparia todo o tempo da viagem a ler. Via-os na sua mão quando, já tarde, regressava a casa. Acabava por vê-los, já sem a tosca forra, à medida que, depois de lidos, iam sendo adicionados à crescente fila de livros na estante.

Por vezes o meu pai chegava a casa com mais do que 1 livro na mão, chegava com livros já lidos e vividos e nessa altura sabia que tinha passado por algum alfarrabista. Não sei se era pelo facto dos livros andarem meio incógnitos dentro das suas ecológicas capas, se era aquela espectativa de ver quando mais um livro chegaria a nossa casa, como quem anseia ver aumentada a sua fortuna, ou se era a simples circunstância dos livros serem transportados na mão, como algo precioso que não pudesse ficar longe do toque e do alcance da mão, o certo é que o meu pai chegar a casa com um ou mais livros na mão era sempre um momento mágico que me fascinava.

Com a passagem dos anos a quantidade de livros lá por casa foi aumentando significativamente, não apenas livros do meu pai, evidentemente, a minha mãe, eu e os meus irmão também demos o nosso contributo. Como se calcula, as respetivas estantes tiveram de ser substituídas por outras maiores, até que uma das paredes da sala foi totalmente preenchida com uma, mas mesmo assim havia sempre livros em segunda fila...

Um dia, na minha pausa para o almoço, comprei mais um livro. Tenho o raro privilégio de trabalhar perto de livrarias, que frequento assiduamente. Por vezes entro apenas para ver, sentir, folhear os livros, ver as novidades, mas nesse dia, como em tantos outros, comprei mais um livro. Saí da livraria com o livro na mão pois agora os sacos têm de ser comprados… senti-me tão bem! A sensação de andar com um livro na mão é maravilhosa, sentimos que transportamos algo tão precioso que não pode ficar longe do toque e do alcance da mão. Enquanto caminhava senti o doce recordar desta memória da infância!


Gostaria que os meus filhos um dia também tenham o privilégio de ter recordações destas... vou fazendo a minha parte.

Professores


Quando se fala em professores que nos marcaram, que são uma referência na nossa vida, daqueles que fizeram a diferença, sinto sempre um vazio. Como é possível não ter tido um professor desses? Analisando mais fria e objetivamente a questão constato que sinto um vazio porque a minha vida de estudante encheu-se de professores desses. Não tenho AQUELE professor que me marcou, mas tenho vários professores, que por uma razão ou por outra, numa determinada altura ou situação, pontualmente, foram marcando a minha vida e que nela se foram tornando referência.

Uma dessas referências foi o professor de português do liceu, entretanto já falecido. Para além das fantásticas histórias da sua riquíssima e longa vida em África, que tanto adorávamos ouvir e que não só nos faziam sonhar como nos poupava algum tempo à aborrecida matéria da gramática, também nos transmitiu ensinamentos que considero importantíssimos para a vida…pelo menos para a minha vida, uma vez que nunca mais os esqueci e sempre me fazem recordar o professor Barbosa.

Um desses ensinamentos é que a palavra CHATEAR é uma palavra feia e como tal não deve ser usada. Não que seja uma asneira, calão ou gíria, mas é efetivamente uma palavra que não é bonita, é deselegante. Deve-se sempre preferir o verbo ABORRECER, bem mais agradável.

Outro ensinamento que nunca mais esqueci, bem, não foi exatamente um ensinamento, foi mais uma constatação, a propósito dos cheios que lhe recordavam a sua saudosa África, é a evidência de que os cheiros são aqueles fatores que melhor e de forma mais realista nos transportam para as nossas memórias e recordações. Com certeza que pela altura da adolescência eu já teria vivenciado esta situação, mas só a assumi como causa-efeito após a sua constatação pelo professor.

A partir dessa altura a cada cheiro, cada aroma que me transporta para uma situação vivida, páro, fecho os olhos e volto a estar lá, no passado, naquele momento. Se sentirmos o cheiro e fecharmos os olhos quase que conseguimos tocar nas coisas e pessoas que fazem parte dessa memória.
Na faculdade recordo uma professora de história de arte/arquitetura que com paixão exultava a luz de Veneza. A luz existente nas praças, nos edifícios góticos e bizantinos, a luz refletida do sol, no céu, nos edifícios, nas ruas e canais.

Arrependi-me de não ter levado mais a sério esta exaltação quando nas férias seguintes fui fazer o inter-rail e passei por Veneza. Arrependi-me porque assim que sai da estação de comboio de Santa Lucia, em Veneza, não consegui abrir os olhos! Era completamente impossível, com tanta luz, permanecer de olhos abertos! Ora bolas, finalmente em Veneza e não conseguia ver nada! Depois daquelas fantásticas aulas de história é inacreditável como não me lembrei de levar óculos de sol para Veneza!

Em determinados momentos recordo um ou outro ensinamento, uma ou outra situação vivida na sala de aula, um ou outro professor. E é destes momentos que a vida é feita, todas as nossas experiências, todas as pessoas que se cruzam no nosso caminho são importantes.

Não precisei de ter um professor herói, tive muitos professores que me proporcionaram momentos vividos que recordo, que me foram transmitindo ensinamentos, experiências. Situações que no momento, provavelmente, passaram despercebidas, irrelevantes, mas que absorvi, apreendi…. Aprendi.

Cheiros, sabores e teletransporte

Adoro o cheiro a éter! O cheiro a éter conforta-me, transmite-me a sensação de segurança, de bem-estar, de alegria, de me sentir amada. O cheiro a éter transporta-me para outros tempos, faz-me viajar até à infância, quando tudo se curava com um abraço... Com um abraço a cheirar a éter. Adoro pegar em bolinhas de algodão embebidas em éter e sentir o seu aroma, sentir aquela tontura que só um amor tão grande nos faz sentir. Adoro recordar o cheiro da minha mãe quando chegava a casa depois de uma manhã de sábado a trabalhar no posto médico...cheirava a mãe...e a éter!

Como já referi noutro texto os cheiros e aromas têm o poder de nos transportar para situações e lugares vividos. Inspiro, fecho os olhos, e volto a estar lá, no passado, naquele momento.

É incrível como ao sentir o cheiro a terra molhada, que é uma situação bastante comum e recorrente, volto a estar com 4 anos nas férias de verão no quintal da casa dos meus tios e primos onde aprendi a andar de bicicleta. Aquele cheiro a chuva de verão! Páro, fecho os olhos por instantes e por instantes volto a sentir as mesmas sensações e emoções dessas férias, acho que até chego a ouvir as vozes dos meus irmãos e dos 8 primos com quem partilhei tantas aventuras.

Curiosamente também o cheiro ao fumo de fogueira me transporta para esses tempos de verão. Foi uma memória que retive muito tempo, uma vez que vivia na cidade e só no verão, quando íamos para casa dos meus tios, sentia esse aroma. Passados tantos anos, agora a viver na província, sinto esse cheiro muitas vezes…é tão bom recordar!

Mas se há cheiro que me transporta e quase teletransporta para essa casa dos meus tios, em Canas de Senhorim, é o cheiro a fraldas sujas! Tiveram 8 filhos, 4 deles mais novos do que eu. Sempre que para lá íamos nas férias de verão ou a minha tia estava grávida ou havia um bebé novo. Como se pode imaginar, era portanto uma casa onde havia sempre, por essa altura, alguém que usava fraldas. Desta forma, a tão caraterística fragrância a fraldas sujas, tornou-se para mim, um cheiro agradável… ou pelo menos um cheiro que me transporta para recordações muito agradáveis!

Mas também há sabores que têm essa fantástica capacidade de teletransporte. Aquela sopa de sabor único, delicioso, que só a nossa avó conseguia fazer e que por mais que tentemos reproduzir a receita nunca conseguimos igualar. Às vezes lá aparece, como que por magia, alguém que o consegue fazer e então lá vamos numa maravilhosa viagem ao passado. Fechamos os olhos, claro, teletransportamo-nos para outro local, noutro tempo, e somos recebidos pelo olhar carinhoso de quem já não está ente nós.


Mas há um sabor que não me transporta para nenhuma época específica da minha vida…porque é um sabor transversal a toda ela. O sabor a chocolate!

Chá, café...ou um copo de vinho tinto

  Ouvi o silvo da chaleira ao lume, a água fervia, o chá ficaria pronto num instante… Mas não tenho por costume fazer chá, nem oferecer ch...