Comboio


Quinta-feira véspera de feriado. Avizinha-se o fim-de-semana prolongado, sente-se na cidade. A pressa de sair do trabalho, da escola, da confusão, de chegar ao refúgio de 3 dias de descanso, torna o trânsito caótico e os passeios apinhados de gente andando em todas as direções, uns a passo acelerado e outros já tranquilos, sem pressas, encaminhando-se para encontros e convívios, para o conforto do lar ou simplesmente usufruindo da cidade sem horário.

A noite de dezembro instalou-se gelada e, chegando à estação, procuro abrigo. O cais, exterior, entre linhas, iluminado com uma luz ténue, oferece apenas uma parca cobertura, entro então na sala de espera que me acolhe com um doce ambiente morno e agradavelmente iluminado. Sento-me, olho em volta e observo. A maioria são passageiros à espera que chegue o comboio que os levará aos seus destinos, quase todos jovens estudantes universitários. Voltam a casa de seus pais, onde saciarão as saudades da família, dos amigos, e de boas refeições; onde irão lavar a roupa e a alma da semana turbulenta na cidade universitária. Alguns, menos jovens, como eu, acompanham quem parte ou esperam quem deverá chegar. Poucos conversam, quase todos de telemóvel na mão. A voz feminina no altifalante avisa, a intervalos regulares, da passagem e chegada dos comboios nas várias linhas e dos atrasos registados. O comboio que aguardo está com 14 minutos de atraso…tanto melhor, tenho tempo para ler.

Tiro as luvas e abro o livro na página marcada.

O gotejar tinha som de poço e respingava para fora da gamela. À sua volta, o pedaço de chão alagado refletia com detalhe a janela e o lusco-fusco. O resto do átrio estava tão sombrio que ninguém conseguia condoer-se de ninguém. E, depois cheirava profundamente a gente. De vez em quando, havia um que tossia e aquilo pegava-se, uma gosma extenuada que enchia a sala húmida. Lá fora, o vento vergava o cais da estação e fazia torvelinhos com as folhas de choupo e os papéis velhos.”

Desvio o olhar do livro. O silêncio de conversas sussurradas envolve-me, quebrado apenas pontualmente pela voz feminina do altifalante. Olho os rostos divertidos de quem se entretém no telemóvel com conversas tecladas nos ecrãs. Ao meu lado duas jovens falam dos exames, estudantes de medicina pelo que percebi, planeiam os dias de pausa das aulas, o tempo de estudo e o tempo de diversão. À minha frente um senhor bem-posto, de sobretudo e luvas de pele, aguarda, sem bagagem, a chegada do comboio. A vida rola, tranquila e animada, penso. Baixo o olhar para o livro e recomeço a ler.

 “ (…) Os vagões já vinham cheios e, assim, quando os soldados correram as portas do comboio, o queixume alastrou por todo o cais. Os prisioneiros espremiam-se dentro das carruagens, olhando lá para fora e uivando ao nevoeiro, não fosse esconder algum guarda piedoso. Pediam água e havia quem erguesse acima da cabeça uma ou outra criança espavorida.”

Chega um comboio, ergo o olhar e através do vidro observo o cais. Há abraços e beijos. Despedidas e reencontros. Os que partem e os que chegam. O comboio que espero ainda demora. Continuo a ler.

“..... a palha encharcada em que se sentara, a sede dos outros que já era a sua sede, a fome, o frio e até o balde obsceno. Quando as portas se fecharam, confirmando mais uma paragem sem pão, houve quem desesperasse. Talvez voltassem a abrir, disparataram alguns, talvez ficassem ali, talvez os alimentassem. E por isso foi com as vísceras que escutaram o som irremediável que chegava dos carris. A princípio, o rodado renitente do comboio só lembrava o peso bruto, a cadência vagarosa do aço contra o aço, a pressa que hesitava e dava esperança aos condenados, como se a vontade deles ainda importasse alguma coisa. Mas, pior que a voz da máquina, só o estertor da carga humana: de novo as tosses, os escarros, os vagidos e as preces tolas. Quando deixaram a estação, nem todos se sentaram, mais valia a parvoíce com que olhavam para a porta aferrolhada.”

Engulo em seco. À minha volta tudo permanece tranquilo, ninguém se entristece, ninguém se comove, todos sorriem. Sou atravessada por um sentimento de desilusão e descrença, constatando desapontada a indiferença de todos ao sofrimento e desespero vividos naquele comboio… Não passará nesta estação.



Transcrições de “Os Loucos da Rua Mazur” de João Pinto Coelho.

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