Lá fora estavam mais de 30º mas
eu tremia de frio. O ar condicionado não permitia uma temperatura amena,
naquela unidade não se arrisca o desenvolvimento de bactérias e outros
“bichinhos”. O facto de estar em jejum há mais de 14 horas também ajudou ao
arrefecimento do corpo e depois, claro, estava como vim ao mundo, apesar do
lençol por cima. Definitivamente não era medo, era frio, só frio.
Levaram-me para um átrio/corredor
que dá acesso ao bloco operatório. Do local onde estava podia ver o corrupio de
médicos e enfermeiros a entrar e a sair do bloco. Podia observar como se
processa a desinfeção dos cirurgiões, esfregando bem as mãos, unhas e braços,
antes de empurrar a porta do bloco com o pé, mantendo os braços para cima, não
tocando em nada.
Li há tempos que os fatos e batas
usados no bloco operatório são verdes porque é a cor onde menos se nota o
vermelho do sangue, mas também poderiam ser verdes por ser a cor da esperança.
A esperança é um sentimento constante naquele local, nem fazia sentido ser de
outra forma.
Como os marcianos, também aquelas
equipas são compostas de seres de outro mundo, pelo que o verde está
corretíssimo!
Um médico foi chamado ao bloco.
“Vou só comer qualquer coisa” disse. Eram 2 horas da tarde. Sei que as
cirurgias tinham começado às 7:30 da manhã, a minha seria a 4ª e última operação
do turno da manhã…acabou pelas 15:30! Poucos minutos depois apareceu o tal médico,
trazia na mão um daqueles pãezinhos pequenos que são servidos nas refeições das
cantinas, individualizados num involucro de plástico, só assim, o pão seco, sem
nada lá dentro, e um pacotinho de leite…eram 14:00 horas! Comeu à pressa,
desinfetou-se e entrou no bloco.
Passou outro médico, reconheci-o:
cirurgião de topo, descascava uma laranja com as mãos. Este gesto tão simples,
saciando uma necessidade básica, senti-o como uma bofetada, daquelas bofetadas
boas que nos fazem acordar para a vida! Aquelas mãos, as mãos que salvam tantas
vidas, descascavam uma laranja, entre blocos, entre cirurgias…entre vidas!
Os médicos e enfermeiros que
trabalham num hospital não têm hora de almoço. Trabalham em turnos contínuos e
devem estar sempre disponíveis para servir as necessidades dos doentes. Comem
qualquer coisa, à pressa, se tiverem tempo almoçam, se tiverem tempo, se for um
turno bom.
Vieram-me buscar, finalmente.
Entra-se no bloco operatório
completamente despido, despido de preconceitos, de títulos e de vaidades. Sem
aliança, anéis, brincos ou piercings, sem verniz nas unhas, sem próteses, sem qualquer
peça de roupa. Só nós, o que mais genuinamente somos, sem nada que nos esconda
as imperfeições. Como nascemos assim nos entregamos àquelas mãos, mãos que
salvam vidas, mas mãos que, como as nossas, também descascam laranjas.
Começam os procedimentos e
protocolos para a anestesia. Depois de me enfiarem pelo braço uma agulha que
disseram ter sido bom eu não ter visto (!), foi tudo muito rápido. Foi o tempo
de assinar o consentimento e de me fazerem umas perguntas. Depois comecei a
ficar zonza, o ponto de luz por cima de mim fragmentou-se como uma pintura
cubista. “Estou a ficar zonza, suponho que isto seja normal”, disse. Sorriram e
ainda senti uma mão carinhosa na minha testa, soube-me bem, depois,
“apaguei-me”.
Correu tudo bem, foi um
procedimento muito simples.
Durante 2 dias testemunhei os
medos, as angústias e a esperança de quem espera por uma intervenção cirúrgica num
Centro de Cirurgia Cardiotorácica. Testemunhei a alegria renovada a cada dia de
recuperação. Testemunhei a cumplicidade e solidariedade entre doentes.
Testemunhei a dedicação, carinho e simpatia dos profissionais de saúde,
auxiliares e administrativos.
Contrariamente ao título do livro
que li nos 2 dias de internamento, felizmente, este não foi “O fim da
história”.
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