Vieram hoje os senhores da
manutenção, finalmente. Estou operacional de novo, após ter estado três dias
parado. Três dias que pareceram uma eternidade e que causaram grande
transtorno, bem sei. Eu ouvia os desabafos no sobe e desce aqui ao lado, os
queixumes de quem não quer fazer o esforço hercúleo de subir dois lanços de
escada. Não compreendo, o meu colega é perfeitamente competente, não teve
descanso nestes três dias, não negou nenhuma viagem. Bem sei que a sua lotação
é menor e as suas dimensões não permitem a viagem do senhor do 3.º direito,
para isso existo eu. No entanto, a minha paragem forçada também teve aspetos
positivos, eles não se aperceberam, mas eu bem vi que a rapariga do 2.º
esquerdo, que adia indeterminadamente a mudança do seu estilo de vida,
finalmente utilizou as escadas. E as manhãs silenciosas, de olhares no chão,
deram lugar a conversas de ocasião, a trocas de sorrisos, a “bons dias”
generosos. Eu estive preocupado, a sério que estive, a minha missão esteve em
risco: como faria o senhor do 3.º direito para se deslocar entre o automóvel,
no estacionamento na cave, e o terceiro andar? Mais uma vez tenho de admitir,
os humanos surpreenderam-me, superaram as minhas fracas espectativas:
coordenaram-se na ajuda ao vizinho e com astúcia, imaginação e boa vontade
transformaram em acessível o meu pequeno colega do lado. É claro que isso os
obrigou a conversar, o que foi estranho de início, a combinar disponibilidades,
a estarem presentes.
Mas hoje já estou operacional. Voltam
os silêncios matinais, quebrados apenas pela energia estonteante dos gémeos do
5.º frente que, independentemente da hora do dia, pulam, falam, cantam, gritam
e por vezes choram, sempre em coro, os dois. Eu bem vejo o olhar cansado
daquela mãe, o seu sorriso ternurento não consegue disfarçar o estado de
exaustão espelhado nas olheiras profundas. Voltam os “bons dias” envergonhados
e inaudíveis, os olhares distantes, focados no infinito, nos planos para mais
um dia ou nos sonhos que talvez realizem. Volta o cheiro a champô, a after-shave e a perfume.
Hoje volta o senhor do 3.º
direito, independente, sempre alegre e positivo. O acidente não lhe tirou o
gosto pela vida, pela aventura, deu-lhe antes um brilho diferente no olhar. Nunca
deixa de cumprimentar quem encontra, de meter conversa, de seduzir. E como ele
seduz! Se eu reproduzisse as meias conversas que já lhe ouvi, as conversas
inteiras, as insinuações e os olhares. Confesso que tem charme o homem, mas
mais do que isso, espalha amor pela vida e tem um brilho especial no olhar ao
qual ninguém consegue ficar indiferente.
Voltam os fins de tarde
movimentados. O atirar com as mochilas pesadas para o chão, o peso adicional
das compras, as conversas ao telemóvel, o contar entusiasmado, deprimido ou
enraivecido como correu o dia de trabalho, de escola, de procura de emprego, as
trocas de olhares e os segredos rápidos, entre pisos. Volta o sobe e desce
atarefado, para comprar, na mercearia do bairro, um artigo de última hora, para
ir passear o cão ao jardim, ir ao ginásio, levar os miúdos ao futebol, música
ou outra das milhentas atividades que os tornarão adultos mais completos, levar
o lixo ou o saco da reciclagem ao respetivo contentor, ir à rua aproveitar os
últimos raios de sol. Volta o cheiro a suor, a lixo e a comida de take-away.
Alguém carregou no botão, alguém
me chamou, não é normal a esta hora do dia. São estes os momentos que mais
aprecio, que mais me divertem. Naquelas horas em que o silêncio é quase
absoluto e em que os meus utilizadores estão sozinhos ou em encontros furtuitos.
Sou testemunha de desabafos, confidências e de enredos de enganos, mentiras e
traições. Fui testemunha de muitas conquistas, algumas zangas e outras tantas
reconciliações… Já testemunhei em primeira mão a notícia de um nascimento mas
também a notícia de um falecimento. Já levei murros e pontapés e já senti os
corpos languidos encostando-se a mim, até já fui beijado. Abre-se a porta. É um
estranho, não mora aqui, nunca o vi antes. Vem sorridente, é sempre bom sinal.
Tira o telemóvel do bolso, posiciona-se de frente para o espelho e tira uma
foto, uma selfie diz-se. É sempre um
orgulho, eu também consigo ser muito fotogénico.
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