A meia


Uma vez mais o meu maior temor aconteceu: perdi-me do meu par, da minha companheira, da minha mais-que-tudo, da minha cara-metade. Não me lembro em que momento a deixei de ver, se embrulhada por outras peças entre as voltas e reviravoltas encharcadas de espuma no carrocel da máquina de lavar, se ficou esquecida, escondida, perdida, em algum canto, recanto ou esconderijo da casa. O certo é que agora estou sem par e vou ser atirada sozinha para a gaveta onde vou ficar, por tempo indeterminado, aguardando um qualquer desfecho para a minha situação.
A culpa pode ser da minha dona que assim que entra em casa se descalça, libertando-se do nosso conforto, do nosso calor, da nossa opressão, largando-nos em qualquer lugar. Gosta de sentir nos pés nus a textura e temperatura do pavimento que pisa! Se a rapariga fosse metódica cairíamos juntinhas no cesto da roupa suja, mas tem um espírito livre, rebelde e deixa-nos em qualquer lugar, espalha-nos pela casa. Frequentemente ficamos esquecidas, ambas ou apenas uma de nós, separando-nos, debaixo da cama, dentro dos lençóis, embrulhadas e camufladas nas almofadas do sofá ou até mesmo dentro de uma das sapatilhas. E é assim ingrato, ao fim de um dia de reconhecida utilidade, palmilhando caminhos, correndo e pulando, somos dispensadas, esquecidas, desprezadas.
Também é possível que entre tantas meias iguais a diferença de tamanhos, 35, 37, 42 e 45 não tenha sido reconhecida e a minha companheira tenha sido erradamente emparelhada com outra. Já aconteceu antes. Irão permanecer juntinhas, embrulhadas ilicitamente até que alguém agarre nelas, lhes desate o abraço infiel, e as tente calçar. Desfeito o equívoco serão lançadas, cada uma, para a sua respetiva gaveta, sós. Se a sorte me bafejar a minha mais-que-tudo cairá ao meu lado, em cima de mim, na gaveta onde a aguardo, onde anseio o reencontro, o nosso abraço.
Enquanto aguardo, na gaveta escura, desarrumada e cheia, a minha sobrevivência dependerá da minha capacidade de permanecer no cimo do monte, por cima de todas as outras meias, bem à vista. Se a tragédia ocorrer, se com os movimentos escorregar até ao fundo, se alguma mão revolver o amontoado de meias na procura de algum par perdido, de algum padrão, cor, tamanho, textura ou temperatura específicas e por entre mexedelas passar para o fundo da gaveta, então não me restará outra sorte senão aguardar, na eternidade, o meu fim.

Resignadamente assumirei a minha sorte, aceitarei o meu destino sabendo que não estou só. No fundo da gaveta encontrarei outras meias, como eu, sós, perdidas do seu par, encontrarei também pares abraçados na velhice e no desuso, aguardando pacientemente o desfecho final. Contarei a minha história para quem a quiser ouvir; os caminhos que percorri, as aventuras que vivi, os jogos em que participei, os espaços e paisagens que conheci, os sentimentos que vivenciei num torcer de pés envergonhado e nervoso, as noites de inverno relaxadas, confortáveis e aquecidas, os dias quentes de verão transpirados nas sapatilhas…os cheiros. Mas a eternidade não será suficiente para ouvir todas as outras histórias que aquelas tristes meias, perdidas e esquecidas no fundo da gaveta, têm para contar.

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