Pausa para café




Se há coisa que não suporto é beber café em pé, ao balcão. Há tempos pedi um café ao balcão de um bar anexo a um campo de futebol onde a equipa do meu filho iria jogar, com o sentido de o ir beber para uma sala contígua e, tranquilamente, ler um livro, na hora vaga antes de se iniciar o jogo. Após pagar o café, pergunto se me posso dirigir à tal sala. Incrédula oiço um não como resposta, a sala está fechada! Bem, o café estava servido, teria de o beber mesmo ali, em pé, ao balcão. Bebi-o rapidamente e fui para o carro ler, ainda faltava muito para o jogo começar. Aquele café não me deu prazer nenhum, bebi-o por obrigação, porque o tinha pedido e estava pago. Se soubesse que não me poderia sentar preferia nem beber café.

Mais do que a necessidade da cafeína, ou o prazer do sabor, eu bebo o café como um ritual, um momento de pausa. E, como todos os rituais, todos os momentos de pausa carecem de tempo e espaço apropriado. Aquele primeiro café da manhã, é o momento em que paro, em que faço a pausa necessária para me encontrar. É o momento em que, em paz, me preparo física e psicologicamente para o dia, para os outros, é quando recarrego a energia necessária. Ok e também a cafeína, para iniciar a minha atividade diária. Esse momento, como um ritual, tem de ser feito com calma, confortável e sem pressa. Mesmo que demore apenas 5 minutos, têm de ser 5 minutos tranquilos.

Aos poucos tenho aprendido a apreciar o sabor do café, mas reconheço que não me possa considerar uma verdadeira amante de café, apesar de não passar sem ele diariamente. Gosto  especialmente do contraste do amargo do café com o doce do açúcar e da canela, gosto de sentir o sabor do café misturar-se com o da manteiga que barra o pão integral que o acompanha e gosto especialmente de sentir o chocolate derreter-se na boca em contacto com o calor do café enquanto os seus aromas e sabores se fundem num líquido cremoso de sabor único e divinal.

Mas mais do que ter aprendido a apreciar o sabor do café, aprendi a apreciar estes momentos de pausa. Começaram nos almoços em família ao fim de semana. Tomar o café prolongava o almoço em convívio sem pressas. Na juventude as tardes passadas nos cafés com os amigos, em conversas intermináveis. Os encontros a pretexto de tomar um café e, após o primeiro filho, aqueles 2 minutos zen, só para mim, em que parava e me sentava a saborear um reconfortante café. Agora, com mais tranquilidade, com mais tempo, faço questão de manter esses momentos especiais, de pausa, sozinha e mais introspetiva ou acompanhada em agradável convívio, prolongando conversas. São minutos em que ganho horas!

Perspetivas




A nossa atividade profissional tendencialmente manifesta-se na forma como apreendemos os espaços, como interagimos e lidamos com situações e vivências rotineiras e na forma como comunicamos. É tudo uma questão de perspetiva e do modo como cada um tem a perceção da realidade.

Quem me conhece bem sabe que sou espacialmente muito desorientada. Quando me encontro num espaço fechado e quero indicar um determinado local nas redondezas, aponto sempre em direção à porta ou à janela…mesmo que essa seja a direção oposta à do referido local. Se, não conhecendo bem um caminho ou não sabendo exatamente uma localização, opto por virar à direita, então é quase certo que deveria ter virado à esquerda. O meu marido por vezes ainda arrisca pedir-me opinião sobre qual o caminho a seguir, mas arrepende-se imediatamente. A verdade é que nem eu confio no meu sentido de orientação, que é quase nulo. No entanto, se estudar um local ou caminho num mapa ou vista aérea, oriento-me perfeitamente. Quando tenho necessidade de conduzir para algum lugar com o qual não esteja familiarizada, basta-me decorar o local e o caminho estudando uma foto aérea e vou lá ter direitinha. É claro que se usasse o GPS o efeito poderia ser o mesmo…ou não! A questão é que, se entender o espaço, a distribuição das ruas e das construções, se perceber, numa vista abrangente e panorâmica, o percurso, com suas mudanças de direção, então o cérebro consegue processar de forma eficaz a espacialidade. E qual a melhor forma de eu entender e o espaço?! Em planta, não fosse eu arquiteta!

 Quando vou comprar fiambre ou queijo fatiados peço sempre um determinado número de fatias. Por norma, e foi assim que a minha mãe me ensinou, as pessoas pedem uns tantos gramas de fiambre ou queijo. Mas, sabendo que utilizo uma fatia de queijo em cada pão que preparo, sei que para preparar os 10 pães semanais preciso de 10 fatias, 15 dando o desconto de quem lá em casa se lambuza com 2 fatias por pão ou assalta esporadicamente o frigorífico, então peço sempre 15 ou 20 fatias de queijo da marca x. Eu sei lá quantos gramas são 20 fatias de queijo! Além disso desisti de pedir os produtos em gramas, os funcionários nunca entendiam quando pedia duzentOs gramas de fiambre! Se acontece comprar paté, daqueles que estão em cuvetes e são cortados mediante o pedido do cliente, peço sempre um pedaço com 1 ou 2 cm de espessura e nunca a quantidade pretendida em quilos ou gramas. Para quilogramas bastam-me, e sobram, os da minha balança!

Tendo uma mãe enfermeira estou razoavelmente apta para interpretar e traduzir o discurso das minhas amigas enfermeiras. A particularidade destas minhas amigas é que os seus filhos nunca esfolam os joelhos, fazem escoriações. Se alguma coisa as incomoda ficam com prurido, enquanto eu ando às aranhas com uma desgraçada comichão.  Na altura da adolescência dos filhos, as nojentas borbulhas de pus transformam-se em elegantes pústulas, que não lhes darão muitas dores de cabeça…apenas cefaleias. Os enfermeiros partilham com os instrutores de educação física uma visão muito mais complexa do corpo humano, o que para o comum mortal são pernas, braços, ombros e rabo, para estes profissionais são fibulares, glúteos, adutores, bíceps, tríceps, deltóides, braquiais, dorsais e romboides. A comida, por sua vez, perde toda a sua complexidade e diversidade para se resumir a calorias, hidratos de carbono, proteínas, vitaminas e lípidos. Um delicioso jantar de bacalhau com natas, bem regado a vinho tinto, tendo uma mousse de chocolate de sobremesa, será para os instrutores, médicos e nutricionistas apenas um jantar com excesso de calorias!

Deliciosas palavras II



Frequento uma pastelaria onde, quase diariamente, compro pão quentinho acabado de cozer para o lanche da família e um pão com passas que vou debicando enquanto leio um livro.  Adoro pedir um pão com passas. Não só o pão é delicioso como a sonoridade do pedido me é muito agradável. Há palavras ou conjuntos de palavras que são tão melodiosos e deliciosos que, independentemente do real sabor do produto, nos fazem água na boca. Pão com passas é uma daquelas frases que, mesmo sem predicado, nos enchem a boca, num contraste entre a textura densa do pão e a doçura fresca das passas. Pão com passas reconforta porque o som nos chega num sussurro quente e doce que nos envolve e nos alimenta a alma, antes mesmo de alimentarmos o corpo.

Tarte merengada é outro delicioso conjunto de palavras. A perspetiva de trincar as diferentes texturas e sabores que se desfazem na boca já me deixa num estado de deleite degustativo, mas ao ouvir o som pronunciado de tarte merengada, todo o corpo desperta na sugestão de se ver envolvido em ritmos quentes e sensuais. A sonoridade, mesmo que não acompanhada pela própria matéria, chega ao cérebro que a processa numa explosão de imagens, sons, sabores, texturas e sensações que percorrem o corpo todo numa ondulante dança.

A palavra broa, chega-nos de chofre, como um sopro rápido, sem sensualidade, sem que a língua se enrole, mas se for acompanhada de figos ou nozes, então o sopro prolonga-se numa brisa morna e doce de fim de verão ou em sussurros à lareira numa noite fria de outono.

Café é simplesmente café, mas um grão de café torrado é toda uma potencialidade de sabores e aromas por despertar. Grão é como broa, um sopro, mas acompanhado pela palavra torrado, torna-se furacão enquanto a língua rodopia entre os dentes ao pronunciar a palavra. O som de grão de café torrado entra diretamente nas narinas, passa pelo cérebro onde se transforma em aroma intenso, até se alojar nas papilas gustativas.

As especiarias enchem a nossa cozinha de sabores e cheiros riquíssimos ao mesmo tempo que vão pontuando o dicionário com palavras melodiosas, coloridas, quentes, perfumadas e muito saborosas. Canela, açafrão, baunilha, cardamomo, cerefólio, gengibre e mostarda são palavras quentes, redondinhas e cheias de mistério, insinuando exotismo, exuberância e singularidade. São palavras que cativam e nos deixam expectantes. Do mesmo modo que a própria substância confere caráter à refeição em que é utilizada, estas palavras, nomes de especiarias, e mesmo a palavra especiaria, têm a particularidade de transformar uma frase banal em algo muito sugestivo. Já comprei um livro porque tinha a palavra açafrão no título e outro pela sugestão de aromas provocada por especiarias também no seu título.

Uma palavra divinal é biscoito! Biscoito sugere a infância, divertida e empolgante, mas também sugere serenidade e conhecimento, em idade mais avançada. Biscoito enrola-se na sonoridade das suas vogais e, simultaneamente, vai sugerindo as possibilidades do seu paladar: biscoito de manteiga, biscoito de baunilha, biscoito de canela, biscoito de laranja…

Humm, imagino agora abrir uma lata de biscoitos onde estivessem guardadas todas estas palavras. Imagino as palavras divertidas a saltar da lata, como pipocas…pipocas, uma palavra que também me é muito agradável pronunciar, o ar a ficar preenchido por uma melodiosa harmonia de sons, libertando odores tão distintos e singulares que nos elevam para um arrebatamento sensitivo… imagino, mas este exercício foi tão intenso e sugestivo que repentinamente fiquei com uma necessidade urgente de saciar o paladar, e o estômago!

A sala de espera da estação




Sentei-me na sala de espera da estação de comboios aguardando a minha boleia. Não regressaria a casa de comboio, mas, ficando a estação mesmo ao lado da estrada onde passaria o meu marido, a sala de espera seria uma boa opção, proporcionando-me abrigo e descanso. Uma réstia de sol espreitou por entre as nuvens carregadas de chuva e a luz amarelada refletida pelo rio iluminou a sala que se encontrava na penumbra, criando uma quadriculada sombra no pavimento de pedra.

Pousei no assento do lado o saco com pão acabado de cozer que libertava um cheirinho irresistível, fazendo um esforço por não ceder à tentação de tirar só um bocadinho, pois a seguir a esse seria mais outro e outro…. Peguei no livro, abri na página marcada, e comecei a ler. A história é cativante e preciso ter atenção para não me perder na leitura e esquecer as horas. De quando em quando levanto os olhos para olhar o relógio, observar a sala e consultar o painel com os horários e cais de partidas dos vários comboios regionais e suburbanos. É o forte vício de olhar para um ecrã que esteja à minha frente, mesmo que a informação que transmita me seja completamente inútil ou desinteressante. Mas não sou uma alma perdida pelas solicitações e estímulos tecnológicos, de igual modo olho e leio todas as palavras e frases que me aparecem pela frente, mesmo não tendo qualquer interesse em saber qual o destino do autocarro que passa, qual a direção a tomar para seguir para o estádio, ou, sabendo perfeitamente que não devo, nem quero, alimentar os pombos que teimam em entrar na estação, continuo a ler e a reler o letreiro que diz: “Por favor, não alimente os pombos; Please, do not feed the pigeons.”

Na sala de espera somos apenas 4 ou 5 pessoas. Aparentemente todos com mais de 45 anos, duas senhoras seguramente com mais de 65 anos. Eu sou a única que ocupa o tempo de espera a ler, todos os outros estão de olhos fixos no telemóvel, conversando por mensagens, vendo algum artigo na Internet ou atualizando e atualizando-se nas redes sociais.

Já não é muito comum ver-se alguém a ler um jornal ou revista nas salas de espera, desconfio que nem mesmo a “Maria” sobreviveu à era digital! Com alguma nostalgia recordo uma viagem que fizemos, ainda sem filhos, a Londres. Tendo ficado alojados em casa de um amigo, a sul de Londres, todos os dias fazíamos a viagem de comboio para o centro da cidade. Fiquei impressionada com a quantidade de pessoas que ocupavam as viagens de comboio a ler. Jornais, revistas, livros, todos liam! Aconteceu mesmo numa dessas viagens nós sermos os únicos na carruagem que não estavam a ler, e a carruagem estava bem lotada. Vergonha, todos a ler e nós apenas nos deleitávamos a ver a paisagem! É claro que nas primeiras viagens tínhamos todas as desculpas para irmos a olhar para a paisagem; sempre alimentei a esperança de, chegando a Battersea, conseguir ver o porco a voar entre as chaminés brancas da Usina Termoelétrica! Mas aquela já não era a primeira nem a segunda viagem para o centro de Londres e como tal imperdoável sermos os únicos na carruagem sem um livro, jornal ou revista na mão. Não me dei por vencida e, decidida a não fazer má figura perante os súbditos de Sua Majestade, tirei da mochila o diário de bordo onde ia relatando a viagem. Sendo um caderno de capa dura, sem qualquer imagem na capa, passaria como um qualquer romance ou livro de aventuras… e era mesmo! Até a estação de Waterloo fui divertida, relendo o que já tínhamos vivido nessa viagem e orgulhosa por ter um livro para ler, mesmo que o seu fim estivesse ainda por concluir.

As luzes da estação acendiam-se finalmente, já não havia sol e a sala escurecida tinha-me feito parar a leitura.  Mas agora também não a retomaria, a minha boleia estava a chegar. À beira rio vi o automóvel aproximar-se enquanto as luzes da cidade se acendiam. Deixámos para trás a cidade já iluminada e voltámos para casa.

Doces memórias




Nas manhãs de sábado da minha infância era acordada pela melodiosa música da gaita de beiços tocada pelo amolador que anunciava assim a sua presença. A música era sempre a mesma, mas era a sua familiaridade o que a tornava mais preciosa. Nem todos os sábados o amolador percorria a minha rua, mas ouvindo o seu toque sabia que estava uma manhã soalheira. Era um som reconfortante. Algumas vezes esperávamos ouvir a melodia do amolador para descermos e recorrermos aos seus eficazes serviços: afiava tesouras e facas e arranjava as varetas dos chapéus de chuva.

Nas manhãs de outono acontecia acordar com os cantares e o corrupio da apanha da azeitona no olival mesmo em frente à janela do meu quarto. No final do verão tinham sido os pequenos tratores e enfardadeiras a acordar-me. Da janela do meu quarto acompanhava o desenrolar das estações do ano. Ainda no inverno a amendoeira enchia-se de flor e a alvura da sua copa contrastava com o verde escuro das oliveiras. Chegando a primavera, o verde do campo era pontuado com algumas flores amarelas, animado com borboletas e acompanhado pelo cantar dos pássaros. No verão, o verde secava e o castanho dourado cobria todo o terreno.

Nas tardes de primavera, depois das aulas, a rapaziada vizinha juntava-se na rua para andar de bicicleta, jogar à bola ou simplesmente inventar uma brincadeira nova. Os dias de verão, durante as férias grandes, eram passados na rua, em aventuras e brincadeiras, longe do olhar supervisor dos adultos, que se encontravam ausentes, a trabalhar. Os mais velhos tomavam conta dos mais novos e isso era suficiente para garantir a segurança de todos. Quando os mais novos já tinham idade para ficarem sozinhos e os mais velhos já não se interessavam pelas infantis brincadeiras, os mais novos respiravam finalmente o doce aroma da liberdade e viviam os dias ao ritmo das suas aventuras. Ao fim do dia, os pais, à janela, chamavam-nos de volta a casa e, quando estava mesmo muito calor, jantávamos na varanda.

Nas quentes noites de verão dormia de janela aberta e de manhã apreciava acordar com o sol a aquecer-me o rosto.

Já adolescente, ao regressar das aulas, por vezes parava no picadeiro. Se se proporcionasse montava um dos cavalos. Mas a oportunidade de os ver, fazer-lhes festas, falar com os tratadores, sentir aquele cheiro intenso que se entranhava na roupa e na pele, era já uma regalia.

Na juventude gostava de ir até ao jardim, sentar-me num banco debaixo de uma frondosa tília e ler. Li alguns livros protegida por aquela imensa árvore, alguns fizeram-me sonhar, outros fizeram-me chorar! Há livros que precisam ser lidos em liberdade, envolvidos pela natureza, para sentirmos bem o privilégio de não os termos vivido entre muros de arame farpado.

Aos 24 anos deixei Lisboa e fui viver para a aldeia. As paisagens mudaram, mas a natureza continuou a marcar as estações do ano.

Aos domingos passei a acordar com os sons de tiros dos caçadores. Era um som muito perturbador. Nessa altura já não apreciava as brincadeiras de rua, nem tinha vizinhos da minha idade, mas instalei uma cama de rede entre 2 árvores do quintal e por lá passei muitos momentos de descanso, alguns a ler, muitos a sonhar.

Mais do que as cores, na aldeia são os aromas que marcam e distinguem as estações do ano, provavelmente serão também as tarefas distintas para quem vive da terra, mas eu da terra apenas colhia umas folhas de hortelã, alguma salsa, folhas de louro, ameixas e figos que tinha no quintal, sem qualquer tratamento. Dos produtos da terra recebia dos vizinhos alfaces, couves, tomates e pimentos, assim como queijo, ovos, enchidos e carne, após a matança do porco. Mas os cheiros do campo são aromas únicos, intensos e por muito verde que a cidade seja, não os consegue reproduzir.  São os cheiros da terra, das plantas, dos frutos e flores, dos animais, o cheiro a lenha e a fumo das lareiras e das fogueiras… na aldeia até os aromas dos alimentos são diferentes.

Coimbra tem mais encanto...




Havia numa parede da sala da minha casa de infância em Lisboa, um quadro com uma fotografia panorâmica de Coimbra. Na realidade não era uma fotografia panorâmica mas várias fotografias a preto e branco que se sobrepunham formando uma imagem da vista que se tem de Coimbra da margem esquerda do rio Mondego. O rio, a ponte de Santa Clara, a beira-rio, a encosta com o seu casario, coroada com a universidade e, como a cereja no cimo do bolo, a torre da universidade. Esta imagem acompanhou-me toda a minha infância e, sem nunca me ter fascinado especialmente, com exceção da parte técnica da sobreposição das fotografias que sempre despertou a minha curiosidade, ficou de forma indelével gravada na minha memória.

Nunca então poderia imaginar que essa imagem de Coimbra viesse a ser por mim visionada, ao vivo e a cores, dia após dia durante mais de 20 anos. As voltas da vida trouxeram-me a esta cidade para trabalhar, mas não para viver. Confesso que não posso dizer que seja uma apaixonada por Coimbra, no entanto reconheço a sua beleza, a sua história e as suas qualidades e acredito que, se me fosse possível deixar de aqui trabalhar, iria sentir a falta dos momentos, dos lugares, mas principalmente das pessoas.

Iria sentir a falta de atravessar o rio, o maior inteiramente português, todos os dias. Das manhãs em que o nevoeiro se eleva do rio, dissipando-se na atmosfera, atravessado pelos raios solares rasantes, criando um ambiente sereno e nostálgico em que o tempo parece parar. De observar os grupos de patinhos bebés seguindo a mamã pata no rio, de ocasionalmente ver um peixe saltar para logo voltar a mergulhar, de observar o voo das gaivotas sobre o rio e de ouvir o seu grasnar, apesar dos cerca de 40 km de distância ao mar. De seguir atentamente o percurso das embarcações desportivas nos seus treinos matinais e vespertinos.

Sentiria certamente a falta de percorrer a pé as ruas da baixa da cidade. De sentir de manhã cedo o doce aroma a bolos e pão acabado de cozer que se liberta dos convidativos cafés ao longo das ruas pedonais a caminho da praça 8 de Maio, enquanto os empregados preparam as esplanadas para receber os turistas, visitantes e trabalhadores na sua pausa para o café. De me cruzar com as esculturas vivas, os músicos e os pintores de rua que pontualmente animam o meu percurso diário. De ver e ouvir as tunas académicas, de fatos e capas negras, atuando na rua, mostrando as suas tradições e atraindo tantos espetadores. iria sentir falta de me “perder” no meio da multidão indiferente, apressada ou descontraída que percorre a baixa e de me reencontrar na livraria do Largo da Portagem.

Mas seriam as pessoas que mais falta me fariam. Não as de rostos desconhecidos com quem me cruzo no decorrer dos dias, mas os amigos que fui fazendo em duas décadas de trabalho. Há pessoas, especiais, com as quais as relações laborais se transformaram em amizades. São 2 décadas de partilhas, de aprendizagens, de trabalho, de cafés e conversas, de muitas frustrações e de alguns sucessos, mas sobretudo são 2 décadas de crescimento e enriquecimento como pessoa, pelas amizades que em Coimbra fui ganhando. As pessoas, algumas pessoas, são o melhor que Coimbra tem! As suas qualidades elevam-se muito mais alto que a torre da universidade, o seu encanto brilha mais forte que os reflexos dourados do sol no rio Mondego e a sua amizade é um bem mais precioso que a Biblioteca Joanina.~

Mas infelizmente, para já, não chegarei a saber se realmente Coimbra tem mais encanto na hora da despedida!

Buraco negro




Há alturas em que te sentes a afundar, sentes que vais bater no fundo e tens medo de não conseguir sair desse buraco negro onde lentamente te afundas. Tens noção que há uma força que te empurra para baixo, mais para o fundo, e precisas desesperadamente de algo ou alguém que te puxe para cima. Mas os dias teimam em repetir-se e continuas a escorregar.

Até que um dia percebes que bateste mesmo no fundo, mas incrível e inesperadamente voltaste para cima pois o chão onde caíste é o trampolim que foste construindo com a tua alegria, a tua força, a tua fé, os teus sucessos, as amizades que soubeste alimentar, o amor que sempre recebeste e incondicionalmente retribuíste.

Quando temos a felicidade de nascer e crescer numa família onde o amor, os valores, a fé, o respeito e o exemplo são presença constante e base da educação, recebemos as ferramentas para irmos construindo, em conjunto, uma rede invisível e muitas vezes impercetível que nos mantém unidos a fortes alicerces e que nos amparará em caso de queda.

Não vi nem senti o trampolim que me fez elevar e sair do estado negativo em que me encontrava, a rede que me amparou a queda, a mão que me puxou para cima, mas senti o resultado da sua subtil, mas imprescindível ação.

Uma vez cá em cima é tempo de afinar o trampolim, remendar a rede, agradecer a mão, alimentar amores, amizades e alegrias, fortalecer a força e a fé e VIVER!

O Ginásio II




O ginásio que frequento com alguma regularidade, não tanta como desejava já que sou forçada a passar grande parte do meu dia a trabalhar, tem um ambiente fantástico e promove constantemente ações de motivação extra aos seus utilizadores. Provavelmente não é muito diferente dos outros bons ginásios, mas é o “meu” ginásio e só por isso já é especial.

Para além da variada oferta de aulas de grupo, de planos individuais de treino adaptados a cada um em função dos seus objetivos e condição física, de treino personalizado, de serviços de parceria nas áreas da estética, bem estar e nutrição, no ginásio estão sempre atentos às necessidades e desejos dos seus sócios e da população em geral, introduzindo novas modalidades e aulas destinadas a crianças e jovens que, não tendo idade recomendada para a frequência de ginásio, adoram poder fazer parte deste mundo encantado onde os seus pais, mães e irmãos mais velhos vão estoirar as energias que sobreviveram a um dia de trabalho, mas de onde vêm, surpreendentemente, revigorados.

Outra situação que nos motiva fazendo-nos sentir pessoas muito importantes (VIP’s) no ginásio é o facto de termos constantemente paparazzi à nossa volta tentando captar o melhor de nós. A qualquer momento poderemos aparecer nas fotos ou vídeos das aulas e treinos no Facebook ou no Instagram do ginásio, o que, não só é uma boa promoção ao próprio ginásio, tendo-nos como protagonistas, como origina que nos esforcemos por fazer os exercícios de forma exemplar e preferencialmente sem pausas para “respirar”, afinal ninguém quer fazer má figura nas Instantstories! Era um fiasco cibernético se fossemos apanhados em vídeo precisamente nos únicos 2 segundos da aula em que fizemos uma minúscula pausa para recuperar o fôlego.

O ginásio é um local que promove o divertimento enquanto nos arrasa o corpo todo. É uma montanha russa de sensações contraditórias, de dor, cansaço, luta, desespero, superação, alegria, bem-estar, prazer, euforia e muito riso, o que nem sempre ajuda à eficácia pretendida… quem é que consegue fazer várias séries de remadas em TRX se fica sem forças por desatar a rir às gargalhadas ao ver na sala ao lado os colegas do Cycling esbracejando numa animada e coordenada coreografia de uma música do Tony Carreira?!

A jovem equipa do ginásio, tem uma energia contagiante e está sempre disponível para fugir às rotinas e criar momentos únicos. Sejam os dias temáticos em que estoicamente vão trabalhar mascarados e de caras pintadas, incentivando-nos a fazer o mesmo, sejam os concursos fotográficos a propósito de dias especiais, como o dia do amigo ou o dia do sorriso, ou sejam os desafios quinzenais propostos a todos os sócios que pretendam participar e conhecer os seus limites, superar-se, superar os outros, ou que simplesmente pretendam submeter-se a um doloroso e humilhante estado de desespero e exaustão em que o arrastar-se e conseguir acabar o desafio já é uma vitória.

Mas a maior motivação, para além do agradável convívio proporcionado, da simpatia de toda a equipa que sabe o nome de todos os sócios, do prazer masoquista que encontramos em nos sentirmos de rastos num banho de suor, é sentirmo-nos melhor, muito melhor, com mais força, resistência, energia, flexibilidade, com melhor postura, com mais foco e equilíbrio, tanto físico como mental. É sentirmo-nos poderosos e leves, não apenas na balança, mas aquela leveza que nos leva a acreditar que somos capazes de vencer os mais incríveis desafios…. Isto até aceitarmos o desafio de maior número de calorias perdidas em 2 minutos na airbike!

Um cesto de figos numa noite de verão




Na mesa redonda de madeira, no centro do pátio, um cesto com figos adoçava o aroma morno do início da noite de fim de verão. Molenga, deixei-me reclinada lambendo os dedos pegajosos do açúcar dos frutos. O vinho repousava no copo de vidro, abrindo-se para a noite que se esperava longa e preguiçosa. A refeição de bolinhas de carne, queijo, pão com mel, pinhões, passas, azeite e ervas aromáticas, finalizada com figos e acompanhada pelo vinho, boa companhia e agradáveis conversas tinha-me deixado um suave torpor no corpo descontraidamente exposto. A túnica verde pendia em direção aos mosaicos coloridos do pavimento, deixando a descoberto as coxas firmes e morenas. Era agradável sentir na pele o vento morno soprado através das copas dos pinheiros iluminadas pela avermelhada luz rasante do sol poente. Semicerrei os olhos filtrando a luz. A pintura à minha esquerda apareceu desfocada, distinguindo-se apenas os tons quentes que a compõem, em pinceladas retratando os deuses que protegem a propriedade.

Não reparei quando ele se levantou para se servir de mais vinho, apenas senti o arrepio do toque da sua mão percorrendo o meu ombro, descendo o braço e pousando na perna. Despertei do meu estado letárgico e virei o rosto para ele, abrindo os olhos num sorriso de prazer. Levou o copo à boca e saboreou o vinho. Deu-mo a provar através dos seus lábios ainda húmidos. O beijo prolongou-se ávido. Foi interrompido pela entrada da jovem, elegante e bela, trazendo uma travessa com a iguaria para degustar no início da noite. Rapidamente pousou a travessa sobre a mesa e retirou-se, envergonhada pela sua indiscrição.  Levantei-me, peguei no copo que levei aos lábios prolongando o sabor do beijo, contornei a mesa e não resisti a provar aquela especialidade de terras distantes, enriquecida com ingredientes locais – tâmaras recheadas com nozes, pinhões e pimenta, envoltas em sal e fritas em mel cozido!

A noite tinha-se instalado e a luz das lamparinas criava sombras ondulantes no pavimento. Maravilhada com as mistura de sabores que se fundiam a cada dentada, a cada gole, despertei todos os sentidos numa ânsia de absorver todas as sensações que a noite proporcionava. Os sons discretos, a luz suave, o aroma quente e doce, os sabores contrastantes e o toque do seu corpo no meu. Com firmeza enlaçou-me com o braço forte e protetor. A visão do contorno do músculo interrompido pela rude cicatriz, obra de antigas batalhas, fez-me perder no seu abraço, aconchegando-me ao seu corpo. O braço livre levou o copo aos lábios e de um trago bebeu todo o vinho restante. Deixou o copo cair, estilhaçando-se no chão, e envolveu-me numa inebriante fusão de corpos, vontades e desejos.

Na privacidade do quarto o sussurro das respirações próximas foi abruptamente suspenso pelo grito gélido que atravessou a noite e os espaços. Num salto levantámo-nos e, envoltos nos lençóis, corremos descalços na direção do som. Apesar da suave iluminação proporcionada pelas lamparinas, era visível no corredor o percurso de sangue marcado no pavimento e paredes. As manchas de vermelho forte vinham da direção do pátio e terminavam à porta do quarto, fechado, da jovem serva. No seu instinto protetor e guerreiro avançou colocando-se à minha frente, deixando-me na proteção do seu corpo forte e musculado. O medo dominou o meu corpo que com dificuldade avançava pelo corredor, no entanto não me poderia afastar da proteção que ele me proporcionava, da segurança que a sua experiência de combate me inspirava.

No pátio fomos recebidos por uma brisa ainda morna e doce, perfumada pelo aroma dos pinheiros e dos figos espalhados no chão. As lamparinas do pátio tinham-se apagado e a lua, no seu quarto crescente, pouco iluminava. Parei encostada a uma coluna, alerta, tentando perceber algum movimento, qualquer elemento suspeito que nos indicasse o sucedido. Corajosamente ele avançou na escuridão, pronto a atacar, pronto a defender-se e a defender-me. O seu inesperado grito de dor paralisou-me de terror. Cambaleando avançou para mim gritando impropérios. Junto a mim deixou-se cair e agarrou-se ao pé ferido que sangrava abundantemente. Apesar da pouca luz conseguiu retirar do pé a lasca de vidro estilhaçado…

Tribunal




Pronto, aconteceu! Algum dia teria de ser. Já tinha recebido algumas notificações para comparecer em tribunal para ser ouvida, na qualidade de testemunha, em audiência de julgamento. No entanto, por os processos terem sido suspensos, arquivados ou porque as partes chegaram a acordo, nunca tinha chegado a entrar numa sala de audiência, num julgamento.

Cheguei cedo, fui, aliás, a primeira a chegar, quinze minutos antes da hora referida na notificação. Quando entrei no edifício do tribunal atravessei o átrio e dirigi-me a um segurança a quem mostrei a notificação e perguntei onde me dirigir. Indicou-se uma zona de espera para onde segui de imediato, sem passar pelo detetor de metais – 1ª desilusão. Imaginava a agitação e animação matinal ao passar pelo detetor de metais, com o relógio, cinto, pulseira, brincos e principalmente a carteira cheia de tralha, fazendo a máquina apitar.

Sentei-me sozinha num banco corrido e observei o espaço. O tribunal está instalado num edifício renascentista, que se desenvolve à volta de um magnífico claustro. Nas galerias inferiores do claustro, de cobertura abobadada, situam-se as salas de audiência. Apesar das sucessivas transformações e adaptações que o edifício sofreu, o claustro mantém as suas caraterísticas quinhentistas, tendo sido elemento fundamental, não só na conceção do edifício, como na sua adaptação ao uso atual. Chegada a hora marcada e já com a presença dos demais intervenientes, foi feita a chamada e fomos encaminhados para a zona de entrada da sala de audiências onde decorreria o julgamento. Eu seria a quinta testemunha a ser inquirida.

Sentei-me com as outras testemunhas num banco corrido, na galeria, à porta da sala de audiência, de frente para o jardim do claustro. Até aí tudo normal, pelo que me recordo dos filmes e séries, também aí as testemunhas esperam no corredor, à porta da sala, sentadas em bancos corridos de madeira. Tendo sido previamente avisada da demora que poderia ocorrer até ser ouvida, ou eventualmente dispensada, levei uma revista para ler e manter-se entretida, conseguindo também assim evitar manter conversa com outra das testemunhas com quem a relação não anda nos melhores dias. As várias testemunhas foram sucessivamente chamadas pelo simpático oficial de justiça e as páginas folheadas e lidas da revista aproximaram-se do fim. Até estava a correr bem, estava a ser relativamente rápido…tão rápido como num consultório médico.

Quando a quarta testemunha a ser inquirida saiu, o oficial de justiça fez-me sinal para entrar, tendo obedecido prontamente. É agora! Entrei na sala de audiência um pouco nervosa e coloquei-me, de pé, onde me indicaram – 2ª desilusão. A sala era minúscula, com um sistema de som que não funcionava (bem), com vários estrados onde se colocam elevadas as cadeiras do Juiz, dos procuradores e dos advogados. Num nível inferior estava o oficial de justiça, a testemunha (eu) e uma pessoa a assistir. Contrariamente aos filmes e séries de televisão, a testemunha está de frente para o juiz e de lado para os advogados. Não consegui perceber qual o local do arguido… também não havia assistência nem jurados, nem tão pouco um Dr. Bull, mas valeu-me a sorte do juiz ser bastante bem-parecido.

O que se passou a seguir não teve interesse nenhum, com exceção do facto do meu nome não estar corretamente referido, isto ainda na parte em que o juiz me dirigiu a palavra. De resto ou as perguntas da procuradora ou as minhas respostas foram tão desprovidas de interesse que nem os advogados de defesa me quiseram inquirir. Resumindo, a minha primeira experiência em tribunal ficou-se por cerca de quinze minutos dentro da sala de audiência, maioritariamente preenchidos a encontrar papelada no processo e tendo obrigado a Sr.ª procuradora a descer por duas ou três vezes do seu pedestal para me indicar a quais documentos se estava a referir, já que a numeração indicada por ela não correspondia aos documentos com os quais pretendia argumentar e inquirir-me. Devo confessar que, para além da simpatia e figura do juiz, o que mais apreciei na minha audiência foi ter feito a procuradora levantar-se da sua cadeira por várias vezes para descer ao meu nível, mas a espectativa de viver acontecimentos únicos e emocionantes dentro da sala de audiência de julgamento saiu gorada.

O Ginásio




Esta semana abriu um novo ginásio na minha área de residência. Um último piso envidraçado com vista privilegiada para os quatro pontos cardeais. O interior é espetacular, com uma arquitetura e design inspiradores, com frases motivacionais espalhadas pelas paredes e chão, bonito, elegante e dinâmico, transmite tanta energia que acredito que apenas entrando lá devo queimar umas quantas calorias.

Com o objetivo de aumentar a intensidade e frequência de exercício físico na minha rotina semanal e com a remota esperança de ficar com uma barriga igual à da rapariga do cartaz que anuncia o ginásio, muito remota mesmo já que a barriga da fotografia é sequinha e sem estrias adquiridas nas gravidezes, inscrevi-me orgulhosa, cheia de entusiasmo e vontade de começar.

Ainda antes da sua inauguração o ginásio promoveu demonstrações de algumas modalidades. Demonstrações anunciavam eles, mas aquilo foram aulas à séria, à bruta, sem dó nem piedade nem contemplações pelo grau de inexperiência dos ingénuos alunos – eu. Se na aula de mix dance andei aos papeis, rodando para a esquerda quando devia rodar à direita, cruzando a perna esquerda atrás da direita formando um X quando o suposto era fazer um V, ou um Z, eventualmente um W, sapateando quando o que se pretendia era um simples e elegante passo de samba, nada que não se resolva com mais duas ou três aulas, já para a aula de cycling fui armada em campeã, afinal não era a primeira nem a segunda vez que andava de bicicleta e com aulas de fitness  duas vezes por semana há nove meses havia de me aguentar a dar o máximo…até ao momento em que desse o “tilt”! Com a aula de balance encontrei o equilíbrio e a certeza que a inscrição no novo ginásio me proporcionará muita felicidade. O certo é que, para além do prazer que me proporcionaram, estas aulas iniciais operaram em mim uma instantânea mudança radical, que o diga quem nos dias seguintes à aula de cycling observou o meu andar!

A minha relação com o desporto nunca chegou a ter contornos de verdadeira seriedade, mas sempre foi de alguma proximidade e cumplicidade. Começou quando eu tinha 2 ou 3 anos e andei em aulas de ginástica no melhor clube de Portugal (!). Dessa altura apenas recordo aquilo que uma fotografia tirada no sarau me sugere: eu descalça, com uma saia muito mini que faria corar a Mary Quant e uma camisolita às riscas, empurrando um carrinho de mão vazio. Sim, a sério, um carrinho de mão. Penso que desde essa altura muito mudou na ginástica em Portugal.

Na primária andei no ballet, mas, apesar do esforço, do treino e de muita insistência, a minha congénita falta de flexibilidade nunca me permitiu o triunfo de conseguir fazer a espargata no ângulo perfeito de 180.º, pelo que ao fim de um ou dois anos desisti do ballet e fui para a natação, o suficiente para conseguir dar umas braçadas no mar, nas férias de verão, sem me afogar. Participei numa competição, e não devo ter ficado muito mal classificada, mas andar a fazer piscinas não era o que mais me fascinava na altura, e no fim da 4.ª classe, desisti. Enquanto miúda sempre me diverti muito e amiúde a andar de bicicleta, de patins e a jogar à bola na rua com os meus vizinhos e irmãos, no tempo em que ainda se podia jogar à bola em algumas estradas de Lisboa, tão escasso era o trânsito.

No liceu passava todos os intervalos a jogar ao “mata” ou a jogar andebol. Apesar da adaptação das regras ao nosso capricho e da falta de orientação especializada, havia a prática diária de atividade física e o meu corpinho Ucal, na altura ainda não existiam outras marcar de iogurtes, bem o demonstrava. No 12.º ano finalmente, com toda a folga de tempo que as 3 disciplinas proporcionavam (bons tempos esses do 12.º ano com apenas 3 disciplinas!), levei o desporto mais a sério e inscrevi-me no CDUL, na modalidade de andebol. Fui federada e joguei no campeonato distrital contra equipas como o Benfica e o Paço de Arcos, ou seria o Oeiras? Mas, como por alguma razão, que agora conheço, o desporto sempre fugiu de mim, ao fim de um ano o CDUL encerrou a secção de andebol feminino.

Na altura de escolher a área de ensino, do 9.º para o 10ª ano, estive mesmo para seguir desporto, como aliás os testes psicotécnicos recomendavam, mas fria e racionalmente decidi que o melhor seria seguir arquitetura, com o argumento que, se seguisse desporto, nunca faria arquitetura, mas seguindo arquitetura poderia continuar a praticar desporto. Assim que entrei na faculdade de arquitetura deixei de praticar desporto!

Quando acabei o curso, das primeiras coisas que fiz, provavelmente mesmo antes de começar a enviar CVs, foi inscrever-me numa piscina e voltar a ter aulas de natação, para adultos. É com orgulho que afirmo que ao fim de poucos meses já conseguia nadar os 4 estilos quase na perfeição e tinha finalmente aprendido a respirar! Como após um ano de ter terminado o curso e ter retomado aulas de natação consegui emprego longe de Lisboa, mais uma vez tive de abandonar a modalidade.

No início da minha vida adulta e profissional, fora de Lisboa, numa altura em que apenas nos grandes centros urbanos existiam ginásios e em que os atuais instrutores ainda usavam fralda, a oferta da prática desportiva para adultos resumia-se a aulas de ginástica que não eram mais que aulas de manutenção que quase nem me faziam transpirar. Entre as tais aulas de manutenção e alguns passeios de bicicleta, com maior ou menor grau de dureza e dificuldade, fui fazendo cada vez menos desporto. Nova mudança de emprego e de residência, o nascimento do filho, passados três anos o nascimento da filha, tudo foram motivos, ou desculpas, para serem cada vez mais esporádicas as atividades físicas. Ainda assim, nestes últimos 20 anos, muito mudou na oferta da prática desportiva para adultos e como sou uma rapariga sempre pronta a novos desafios, andei num ginásio, fiz hidroginástica, beneficiei do regime livre das piscinas para nadar enquanto a minha filha tinha aulas de natação sincronizada e andei assiduamente nas aulas de fitness que muito prazer me deram.

Mas agora tudo vai ser diferente, agora é que vai ser! E vai ser para a vida, nem que seja pela razão de a minha inscrição no novo ginásio estar associada a um desconto vitalício. Já me estou a imaginar daqui a vinte anos, quase com 70 anos (credo, isto dito assim até assusta!), com um corpinho magro e seco, a dar um bailinho de força, resistência e coordenação motora às miúdas de 20 anos que se inscrevam no ginásio pela primeira vez!

People are awesome



Estou completamente rendida ao Ser Humano. Descontando alguns exemplares que nada têm que possamos elogiar, a verdade é que o Homem é um ser admirável. Não pretendo enaltecer os feitos notáveis e que já constam de vários compêndios, mas é impossível ficar indiferente perante a capacidade do Homem ir à lua, atravessar oceanos, descobrir a cura de doenças, transplantar corações, idealizar e construir algo grandioso como A Sagrada Família ou algo simplesmente belo e perfeito como a estátua de David, compor e executar o sublime Requiem de Mozart, escrever o Memorial do Convento, escalar até ao topo do Monte Everest ou marcar um golo de pontapé de bicicleta!

Bem, será provavelmente exagerado colocar o pontapé de bicicleta ao nível de um transplante de coração, de um Requiem de Mozart ou de uma Sagrada Família, mas não deixa de ser algo belo e fabuloso, a ponto de colocar milhares de adversários de pé a aplaudir! São precisamente estas ações “menores” que eu quero enaltecer. E as ainda “menores”.

Se nos abstrairmos da violência, das agressões, da destruição, da falta de civismo e da estupidez crua e bruta, conseguimos encontrar qualidades maravilhosas no ser humano. Qualidades intelectuais, criativas, físicas, motoras, emocionais… Grandes obras ou pequenos gestos que nos tornam únicos e especiais e que fazem com que a nossa vida seja repleta de prazer e de momentos lindos.

Encantamo-nos com obras de arte excecionais, maravilhamo-nos com as mais incríveis conquistas desportivas, abismamo-nos e com os avanços científicos atingidos e orgulhamo-nos dos especiais entre nós. No entanto, se estivermos atentos conseguimos ver o maravilhoso que há nas pequenas coisas que cada um de nós concretiza.

Deslumbro-me com o encantador que é um pai a aconchegar um filho no seu colo, afagando-lhe os cabelos e secando-lhe o choro com beijos. Derreto-me com o riso de crianças nas suas brincadeiras descontraídas em que cabe o mundo inteiro. Delicio-me ao mergulhar num negro e profundo olhar, rasgado num sorriso, e sinto o prazer de encarar a simpatia de alguém, deleito-me a observar um corpo bem esculpido e gozo o prazer do seu abraço.

Fascina-me a rapidez, o humor e a acutilância com que surgem piadas, comentários e observações perante qualquer acontecimento. Terminando de ler um bom livro, que durante dias me proporcionou bastante prazer, reflito sobre a excecional capacidade de o autor criar o enredo, os pormenores da ação e dos lugares numa escrita atrativa, capaz de nos transportar para outra dimensão. Envolvida pela imensidão de milhares de espetadores vibro com a música, as luzes, efeitos especiais, com todo o ambiente criado, com a energia contagiante dos músicos e com a alegria e loucura do público, pulando e cantando. E vivendo estes momentos encho-me de felicidade e incho-me de orgulho pelo maravilhoso que os humanos conseguem ser, sentir e viver.

E para que eu considerasse o ser humano espetacular nem necessitava de me encantar com uma pirueta, um salto mortal, um passo de dança, uma nota musical, um traço numa tela, um poema, bastava ter provado chocolate! Um jantar de amigos, com várias iguarias, doces e salgadas, regado com bom vinho, com muita conversa e com muito riso é suficiente para exultar o ser humano nas suas várias dimensões. No entanto, revejo verdadeiramente a grandiosidade do Homem na simplicidade dos gestos e dos momentos quando a minha filha, no seu voluntariado, acarinha um deficiente profundo, quando o meu filho salta mais alto e mais longe e defende o que seria um golo certo e quando os meus pais com tanta sabedoria e amor me dão as melhores lições de vida.

" O melhor de mim"




Há um ano aceitei o desafio de escrever semanalmente um texto, sem tema pré-definido, para ser publicado de início num jornal digital e agora apenas no blogue que entretanto e para esse efeito criei. Foi com receio e com alguma insegurança, mas com muito entusiasmo, que aceitei o desafio. Desde as redações dos tempos de escola e dos trabalhos escritos na faculdade, não escrevia um texto para ser lido por terceiros e, nessa altura, apenas um número muito limitado de pessoas tinha acesso a esses trabalhos e redações. É certo que o resultado do meu trabalho profissional é concluído em forma de textos, mas são informações técnicas que nada devem à imaginação nem apelam à criatividade.

Semana após semana, os textos foram surgindo sempre, uns mais inspirados, outros mais divertidos, outros ainda mais sentimentais, mas o certo é que consegui ter todas as semanas um texto publicado, abordando temas que de início jamais imaginaria vir a tratar, expondo alguns dos meus sentimentos. Neste ano em que escrevi para mim, porque o gozo de escrever é imenso, e para os outros, sinto que muito se alterou em mim, estou melhor agora! Não quero cair no lugar-comum de dizer que me tornei uma pessoa melhor, que cresci, que aprendi, etc., sou a mesma pessoa, nem melhor nem pior. Efetivamente neste ano aprendi e continuo a aprender muito, mas essencialmente estou diferente no meu relacionamento comigo e com os outros. Sou hoje uma pessoa muito mais confiante e muito mais segura do que era há um ano.

Essa mudança só aconteceu porque alguém maravilhoso viu em mim o que eu ainda não tinha visto. Alguém tão bom que consegue ver o melhor dos outros, mas para além de ver, alguém com a iniciativa e com a capacidade de nos estimular a explorar e a dar esse melhor. Neste momento estou plenamente consciente do privilégio que tenho em ter como amiga alguém que oferece uma caneta e diz “escreve!”, que oferece um tela e diz “pinta!”, que oferece a página de um livro e diz “desenha!”, e nós escrevemos, pintamos, desenhamos porque é impossível resistir-lhe! A sua paixão pela vida, a sua criatividade, a sua capacidade de amar, de se dar, de trabalhar, de criar, de explorar, de mudar, de inovar, transborda e contagia-nos numa alegria e vontade de fazer, de construir…de nos reconstruirmos!

Para além da pessoa que de início me empurrou para o abismo do desconhecido e me fez voar, daqueles que ao longo deste ano leram os meus textos e me incentivaram a continuar, há uma outra pessoa fundamental neste processo. Alguém com o conhecimento e com a vontade de me ensinar mas também de aprender. Alguém com a frontalidade e a segurança de dizer “está mal, faz diferente!”. Alguém a quem a familiaridade não tolda o sentido de crítica nem diminui a imparcialidade. Alguém que corrige, que incentiva e que orienta para que o voo se mantenha, num suave planar ao sabor da doce brisa da imaginação.

É uma satisfação enorme chegar a este ponto, olhar para trás, e sentir que consegui! E quando o saldo é claramente positivo o passo seguinte é agradecer e continuar, porque a recompensa é o prazer imenso que a escrita me dá. Obrigada!

O relojoeiro




Era uma vez um relojoeiro. O relojoeiro passava todos os seus dias a cuidar dos relógios. Limpava, afinava, acertava e reparava os relógios, com muito cuidado e precisão. Eram muitos e variados os relógios que lhe ocupavam os dias, relógios de pulso, relógios de bolso, relógios de parede, relógios de pé alto… A todos dedicava a sua atenção e de todos conhecia com rigor os seus mecanismos. O relojoeiro era mestre no seu ofício, e de todo o país acorriam pessoas que confiavam nas suas hábeis mãos para que os seus estimados relógios voltassem a marcar o tempo, com o ritmo que é suposto o tempo ter. E ele abria, limpava, afinava, acertava e reparava os relógios, devolvendo o ritmo ao tempo. Por vezes era necessário reconstruir peças e com a segurança, minúcia e destreza das suas mãos recriava dentes de rodas, partes de tambores, âncoras, balanços e espirais. E devolvia o ritmo ao tempo.

De tanto viver entre relógios e peças de relógio, pois à sua volta abundavam caixinhas e compartimentos de madeira com milhares de minúsculos parafusos, rodas dentadas, espirais, tambores de corda, molas, âncoras, balanços, reguladores e toda a espécie de ponteiros e mostradores, um dia o relojoeiro deu por si transformado num relógio. Um lindo e valioso relógio de bolso. A sua caixa era preciosamente construída em ouro para que o tempo, ao avançar, não a corrompesse. A tampa, sobre o mostrador, continha uma complexa pintura representando toda a sua vida, para que o tempo, com o seu ritmo certo, a fosse decorando, conhecendo os seus lugares, as suas gentes, os seus amores e desamores.

O relojoeiro transformado em relógio foi carinhosamente levado para casa pela sua família. Já não arranjaria mais relógios, era agora ele o relógio a cuidar, a limpar, a afinar, a acertar e a reparar. E lá foi marcando o tempo, ao ritmo do seu tempo. E o tempo foi ficando mais lento, o seu ritmo irregular. A família com cuidado pegou nele e na medida do seu conhecimento e capacidade foi limpando, afinando, acertando e reparando para que o tempo não deixasse de avançar na cadência dos ponteiros. Passaram-se meses. À medida que os ponteiros iam girando, a um ritmo cada vez mais lento, o tempo ia decorando e absorvendo toda a pintura da tampa que, de tão esbatida estava, já mal se distinguiam os traços, as linhas ou as cores.

Um dia os ponteiros pararam de girar e a tampa sobre o mostrador deixou de representar qualquer pintura, apenas brilhava o ouro polido, sem mais cores, sem linhas, sem traços. A pintura da sua vida tinha sido completamente decorada e absorvida pelo tempo. E então, quando parecia que o relojoeiro transformado em relógio tinha parado naquele tempo, no seu tempo, a família percebeu que do seu mostrador libertavam-se as cores, as linhas e os traços que haviam formado a pintura da sua vida. E essas cores, essas linhas e esses traços transformaram-se em novo tempo, no tempo que faz girar os ponteiros da vida daqueles representados por essas mesmas cores, linhas e traços.

A despensa




Há alguns sonhos que na minha vida têm sido recorrentes. Não falo no sonho de fazer uma viagem ao Ártico, no sonho de esbarrar de cara com algum ator de Hollywood lindo de morrer, no sonho da equipa do meu filho ser campeã e da minha filha se tornar a atriz que deseja ou no sonho de eu ganhar o euromilhões. Estou a falar daquelas imagens e histórias projetadas pelo subconsciente enquanto dormimos. Entre o sonho em que quero correr e não consigo, o sonho em que estou a voar sobre a cidade, o sonho em que conduzo à maluca e a grande velocidade numa estrada estreita e cheia de curvas sem que nunca me despiste e o sonho em que encontro dinheiro a cada passo que dou, há o mais delicioso sonho que me visita de forma recorrente: sonho que tenho a despensa cheia, cheiinha, a abarrotar de chocolates. Pilhas e pilhas de tabletes de chocolates e de caixas de bombons, ocupando várias prateleiras! Curiosamente e por alguma razão, que por certo os psicanalistas conseguirão explicar, a despensa do meu sonho é sempre a despensa da casa dos meus pais e nunca a minha própria despensa.

Já houve uma altura em que a minha despensa se aproximou do sonho, com uma quantidade de chocolates e bombons bem acima do normal. Mas essa foi uma altura extraordinária, fruto de uma conjugação de maravilhosos fatores e vontade cósmica que nos proporcionou ter muitas tabletes e caixas de bombons, mas que, infelizmente, não durou muito tempo, tal a velocidade com que são consumidos, apesar das regras impostas. Por norma há sempre um ou dois chocolatinhos na minha despensa, um de leite para quem não gosta de chocolate negro e um negro, por eleição, e ficamos por aí, não convém abusar porque havendo, não ficam para reserva... Os chocolates são como o vinho verde, não são para guardar mas para consumir logo! Nas épocas especiais, que é como quem diz no Natal, na Páscoa, quando os meus pais nos visitam e quando recebemos a visita de amigos belgas, o stock de chocolates aumenta e os meus olhos brilham de satisfação ao olhar para as prateleiras da despensa, com tabletes de chocolate sobrepostas, mesmo à altura do meu olhar e para meu prazer.

Mas a minha despensa guarda muito mais do que chocolates em tempo de festa. A minha despensa é um pequeno mundo e submundo concentrados num espaço lotado mas devidamente organizado e hierarquizado por categorias de produtos. Na verdade é um espaço que deveria ter o triplo do tamanho e ser compartimentado para que não houvesse promiscuidade entre produtos alimentares, produtos de limpeza, ecopontos caseiros e bens de uso ocasional, mas o suplemento de área obrigatório para as habitações, previsto no regulamento de 1951, nunca se atualizou considerando as vivências e necessidades atuais.

São variedades e qualidades infindas do mesmo produto: arroz agulha para o simples arroz de acompanhamento, arroz carolino para o arroz de marisco, arroz de carne, etc, arroz vaporizado para o delicioso arroz de pato, esparguete, massa de cotevelinhos, espirais, macarronete riscado, macarrão, lasanha, feijão preto, feijão branco, feijão manteiga, feijão vermelho, baked beans with tomato sause porque às vezes gostamos de recordar os sabores de Inglaterra, folhas de louro colhidas diretamente da mãe natureza e secas naturalmente, frascos com orégãos, pimenta preta, pimenta vermelha, pimenta 5 bagas, caril, açafrão, gengibre, canela, piripiri, cravinho, cominho, salsa, ervas aromáticas, ervas de Provence, ervas aromáticas italianas, manjericão porque o que está no parapeito da janela nem sempre tem as folhas suficientemente grandes, cebola roxa, cebola branca, cebolinho…etc., numa lista interminável passando pelos chás, cafés, cereais e vinhos.

Como a minha despensa é uma despensa promíscua, pela qual ainda não passou a ASAE, também guarda os ecopontos caseiros – rolhas de cortiça, tampinhas de plástico, pilhas, cápsulas de café, embalagens vazias de medicamentos, papel, embalagens e vidros, para além dos produtos de limpeza, que são tão variados quantos os tipos de materiais existentes num lar: multisuperfícies, vidros, tijoleira, soalho, limpa-tudo, limpa chão, limpa fornos, especial casas de banho, lixívia, especial calcário, especial combate bolores, desinfetante, desengordurante, tira nódoas, abrilhantador, sal de máquina, pastilhas para a máquina, amaciador de roupa, detergente roupa de cor, detergente roupa normal, detergente roupa delicada... ufas, e claro, um bem muito importante ter sempre de reserva na despensa – papel higiénico!

Amor à camisola




A uma jornada do fim do campeonato nacional de futebol – Liga Portuguesa (Liga NOS), já está apurado o campeão e feita a festa. Mais um ano em que o “meu” clube não ganha, já são muitos anos, nem sei quantos, apesar dos meus queridos amigos de clubes rivais me estarem sempre a lembrar desse astronómico e inquantificável número de anos. Sinceramente isso não me preocupa muito, tenho pena, gostava que o “meu” clube fosse campeão, mas não é essa a razão que me move, não é essa a razão pela qual a minha preferência recai sobre esse clube. Nem sequer é pela cor que o representa, caso contrário este seria um dos últimos clubes que apoiaria.

O meu amor a esta camisola nasceu cedo, tão cedo como o conhecimento que tenho de mim. É um amor herdado e um amor que em pequenina alimentei ao vestir essa mesma camisola, mesmo que numa modalidade diferente. É um amor que ficou do tempo dos berlindes e das corridas com tampas de caricas, com as caras dos futebolistas, é um amor sereno, agora, sem paixão e sem loucura, mas um amor leal. Mas como um coração de mãe, com capacidade para amar mais do que um filho, também agora apoio outro clube, um clube do coração.

As voltas da vida fizeram-me deixar a minha cidade, a minha terra, a terra do “meu” clube, acabando por me instalar, aparentemente, de vez, numa pequena e simpática vila, agora a minha terra adotiva e para sempre a terra dos meus filhos, com direito a registo de naturalidade na conservatória. Também esta simpática vila tem um clube, que não é só de futebol, mas onde o meu filho joga futebol. Quando o meu filho, com seis anos, vestiu a camisola deste clube pela primeira vez, senti que desde aquele momento alimentava um amor que ficará para a vida toda, um amor ao clube da sua terra, um amor ao clube cuja camisola foi a primeira que vestiu. No entanto ele tem outro amor, tem outro clube do coração, adquirido por herança, e acredito que também vestirá outras camisolas, de outros clubes, que por eles dará o seu melhor e que a esses clubes dará o seu amor ou pelo menos a sua leal dedicação e empenho. Mas o amor ao seu primeiro e atual clube é um amor tão entranhado que me contagiou. É um amor vivido, suado e sofrido.

Mas este clube é apenas o clube de uma pequena vila do centro de Portugal e como tal, pensa muita gente, é um clube menor que não prestigia quem nele joga, nem contribui para a sua excelente formação desportiva e humana…não podiam estar mais errados! Esse sentimento é movido pela influência da proximidade geográfica de uma cidade que tem tudo para ser grande mas que é uma cidade pequenina. A sua pequenez reside no facto de estar tão cheia de si própria, que não consegue lidar com a evidência de estar a ser ultrapassada em qualidade e valor por aqueles que considera inferiores. Como em algumas situações não consegue impor de forma legítima a superioridade que considera ter, usa toda a sua influência e poder para que a sua dignidade não seja ferida, ignorando que são exatamente essas atitudes que ferem de morte a dignidade e o prestígio da instituição. E assim, impondo os seus clubes e os seus atletas, que são bons atletas, as cidades pequeninas vivem o sonho e a ilusão que são grandes.

É desta forma sofrida, lutando com coragem e dignidade, com muito trabalho e determinação, com paixão e união, que os pequenos clubes de pequenas terras se tornam grandes, porque cada derrota, cada injustiça, cada infortúnio são encarados de cabeça erguida, com a dignidade intacta, com a vontade de melhorar ainda mais forte, com a determinação de provar o valor, a qualidade, a paixão pelo jogo e a união existente, na equipa e no clube. E é por esta razão que o clube que lhe proporciona tantas alegrias, tanta aprendizagem e crescimento desportivo e de caráter, mas pelo qual também sofre algumas injustiças, sem que no entanto o demovam do seu empenho, será para sempre um clube no coração do meu filho …e no meu!

Chá, café...ou um copo de vinho tinto

  Ouvi o silvo da chaleira ao lume, a água fervia, o chá ficaria pronto num instante… Mas não tenho por costume fazer chá, nem oferecer ch...